CONSERVA
Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição
PARTE I
Ernesto não mais
aguentava os abusos de Iago. O velho cigano, bastante conhecido entre a
vizinhança do vilarejo, que era um dos principais fregueses da oculta e mal
frequentada taberna da família de Ernesto – o estabelecimento pertencera ao seu
bisavô, avô e pai - , estava abusando de seus calotes com o pobre barman, além
causar inúmeros prejuízos durante suas bebedeiras e ameaças de revelar
acontecimentos futuros para o dono do estabelecimento, que era bastante
supersticioso.
O barman, cujos nervos estavam ultimamente por
um fio, temia perder a paciência com aquele inconveniente “cigano” que tanto
lhe tirava do sério. Quando o ódio infelizmente toma conta da cabeça de um
homem, este deve preservar ao máximo o mínimo de razão que ainda lhe resta.
Infelizmente, esse não foi o caso de Ernesto.
Recentemente viúva, uma prima de qual o pobre
barman sempre fora perdidamente apaixonado faria uma visita a sua casa, que
ficava acima do seu estabelecimento comercial, na próxima semana; e Ernesto não
gostaria que Vivian o visse sendo debochado por um cigano bêbado e velho que se
achava superior que os demais. Por isso, veio-lhe em mente uma ideia maligna,
da qual ele se arrependeria profundamente mais tarde, mas não naquele momento:
Teria de se livrar de Iago.
Naquela noite de segunda-feira, apenas dois
dias depois de planejar, tudo estava pronto. Sentado do lado de trás do balcão
de madeira envelhecida, pregado ao chão, também de madeira, do bar, Ernesto
esperava ansiosamente seu único cliente das segundas-feiras. No extenso armário
das bebidas atrás do barman, da qual havia várias garrafas de longa data de
whiskey e rum, da época em que a taberna de Ernesto vivia seus dias de ouro, o
homem teria guardado uma camuflada garrafinha inusitada que, na verdade, era um
poderoso veneno que o barman comprara para alguma eventualidade em uma das
feiras ciganas que aconteciam no vilarejo anualmente. Apesar de estar com a
cabeça absurdamente quente, Ernesto não poupou frieza em sua perturbada mente
para eliminar o homem que tanto lhe causava ódio com um elemento fabricado pelo
seu próprio povo. Quando o cigano se sufocar com a substância mortal e esta
começar a fazer o efeito que causaria sua morte, Ernesto esconderia o corpo
dentro de um alçapão que dava para um poço, revestido de cerâmica, cheio de
cebolas em conserva (da qual o barman as servia no bar como aperitivo
irresponsavelmente há mais de 10 anos). A água que deixava o alimento
conservado faria o mesmo com o corpo de Iago até o domingo, quando todos os
habitantes do vilarejo iam para a Igreja, exceto Ernesto e os poucos ciganos
que lá viviam (que costumavam ficar em casa nas manhãs de domingo e sair apenas
durante a noite); dia perfeito o domingo para o barman levar o corpo
discretamente para a floresta e enterrá-lo.
De acordo com o que a prima Vivian dissera,
ela chegaria à cidade na próxima segunda-feira. “Imagina se minha prima se
deparasse com aquele indivíduo bêbado e mau caráter assim que chegasse a minha
taberna?”, pensava Ernesto. “Aquilo deve ser feito, e deve ser hoje!”.
Às 10 horas da noite em ponto, seu tão
“adorado” freguês chega ao bar, já embriagado devido às “abrideiras” que tomara
durante a tarde. Iago, esbanjando folga e descontração, cambaleia, chacoalhando
as diversas pulseiras que haviam em seu pulso, para o balcão.
- Meu amigo! –
Cumprimentou o cigano, avançando perante o balcão para me dar um abraço
desajeitado. - Ué? Mas não tem mais ninguém aqui?
Ernesto respirou
fundo e respondeu, enquanto preparava um copo de cerveja quente:
- Você é meu único
cliente das segundas, não lembra? A maioria do vilarejo trabalha durante a
semana...
- E você também! Por
isso está aqui, me oferecendo essa maravilha de bebida! – Interrompeu o cigano,
virando o copo de cerveja em menos de 5 segundo goela abaixo. – Aliás, sobre a
minha conta, acho que a partir do próximo mês vou começar a pagá-la.
- Você está prestes
a pagar sua conta, meu caro. – Disse Ernesto para si próprio, como se estivesse
pensando alto.
Iago estava tão bêbado que não havia prestado
atenção na possível ameaça da qual eu murmurara. Ernesto resolveu, então, botar
meu plano para funcionar. Após servir o velho cigano com outro copo gigante de
cerveja amarga quente, o barman virou-se para o armário de bebidas para pegar
uma garrafa de um pouco valioso, porém de sabor magnífico, vinho italiano
chamado La Gôndola, datado do início da década passada, para servir ao seu “convidado”,
juntamente com o veneno dissolvido.
Percebendo que seria bastante prudente manter
a porta da taberna fechada, para que ninguém aparecesse de surpresa e se
deparasse com Iago se contorcendo no chão, Ernesto improvisou:
- Está um pouco
frio. – Disse a Iago, fingindo estar massageando o peito com as mãos. – Vou
acender a lareira.
Iago, quase
mergulhando a cabeça por cima dos braços no balcão, concordou com a cabeça. Assim,
Ernesto se deslocou para a bela lareira de mármore preto, cujo corpo da chaminé
que ficava logo acima da peça rochosa escura, possuía diversas fotos e placas
dos velhos tempos em que sua espelunca era um bar de renome, para acender o
fogo. Após manter o ambiente aquecido, discretamente, o barman andou em direção
à porta e às janelas da taberna, trancando todas.
Ao finalmente retornar ao seu posto. Ernesto
começou a encenação:
- Gosta de ler, cigano?
Iago, que mal conseguia falar de tão
embriagado, respondeu soluçando:
- Bom... depende...
hic! Gosto de ler fantasias, ou histórias de suspense... hic!..., mas não
costumo ler muito essas coisas. Leio mai... hic!... meus livros de esoterismo e misticismo.
- Já ouviu falar em
Edgar Allan Poe? – Sempre havia um brilho nos olhos de Ernesto quando
mencionava seu autor favorito, seja qual fosse a ocasião.
- Ouvir, eu já ouvi.
Ler, nunca li! – Respondeu Iago, seguido de uma típica risada forçada de
bêbado.
- Uma pena, eu
diria. Mas, tudo bem. Há um conto dele que sempre me deixou impressionado, “O
Barril de Amontillado”. Conta a história de um homem, cansado dos abusos e
implicâncias de um amigo, Fortunato, que decide se vingar, levando o tal
provocador para o subsolo de uma adega, para procurar uma valiosa garrafa de
vinho, e o emparedando nos tijolos do local escuro e esquecido por Deus e o
mundo.
Iago, que, como era de se esperar, não estava
prestando atenção e jamais desconfiaria que Ernesto faria dele um Fortunato em
poucos minutos, respondeu à aula de literatura do amigo:
- Então... tens uma
garrafa dessa de amontinãoseioquê aí contigo? Hic!
Ernesto se virou para pegar a pouco valiosa
garrafa de La Gondola, servir duas taças e jogar uma mísera gota do poderoso
veneno em uma delas. Enquanto isso, Iago continuava:
- Ou um barril
inteiro, se não se importar? – Dando suas típicas gargalhadas que exalavam um
fedor de hálito podre misturado com álcool.
Ernesto respondeu,
ao se virar:
- Amontillado eu não
tenho, meu caro. Mas, tenho uma coisa melhor. – Ernesto pôs a garrafa de vinho
e as duas taças por cima do balcão da taberna. – Imagino que você não irá
recusar esse néctar dos deuses.
Iago, cujos olhos estavam enfim totalmente
abertos, respondeu, bastante entusiasmado:
- Não precisei
consultar as cartas, nem mesmo as estrelas, para saber que hoje eu seria
presenteado!
- Nada como uma boa
surpresa para o meu único cliente das segundas. Então, saúde! – Disse eu,
erguendo minha taça.
- Eu juro que vou
repensar nas minhas contas atrasadas. Minha dívida será paga. – Respondeu Iago,
erguendo a taça e virando-a goela abaixo, em seguida.
- De fato. – Assentiu
Ernesto entre dentes, esperando a mágica acontecer.
Assim que terminara de engolir a bebida, o
cigano caíra para trás com um forte baque no chão, batendo violentamente a
cabeça no piso de madeira. Após se contorcer de forma bastante medonha, aos
olhos de Ernesto, no chão, Iago finalmente havia perdido todas as sensações
humanas que possuía, inclusive a de ter prazer em beber, e capacidades, como
respirar. Estava pálido, imóvel, com os olhos bastante esbulhados e espumando
pela boca. O barman jamais tinha visto um veneno tão eficiente como aquele,
desde a invenção dos refrigerantes.
Com um discreto sorriso de satisfação no
rosto, Ernesto pulou o balcão e foi de encontro ao corpo do velho cigano que no
chão de madeira jazia. Olhando claramente para aqueles olhos extremamente
abertos, com as pupilas dilatadas, que não mais enxergavam, o barman sentiu um
breve remorso, que logo foi aliviando quando este sentiu uma medonha vontade de
pisar no rosto do falecido, o que foi feito logo em seguida. Com o impacto do
pé de Ernesto, o nariz de Iago quebrou e uma poça de sangue formou-se ao lado
de sua cabeça.
Sabendo que estava na hora de esconder o corpo
naquele lugar secreto, onde o cadáver não apodreceria até o domingo, Ernesto
logo começou o procedimento. Pegou Iago pelas pernas e o arrastou até o subsolo
de sua taberna – que era bem mais limpo e iluminado que o próprio
estabelecimento, por ser o local favorito e mais bem cuidado do seu avô, que
gostava de controlar a qualidade das bebidas e alimentos -, deixando, de
maneira extremamente descuidada, um rastro de sangue pelo piso do
estabelecimento. Quando finalmente chegou ao poço, que mais parecia uma fonte
de uma praça qualquer, revestido com cerâmica e fechado com uma pesada tampa de
pedra (a ideia do poço para guardar alimentos em conserva teria sido do avô de
Ernesto, um velho maluco que adorava extravagâncias e fazia de tudo para manter
a taberna em funcionamento), o barman despejou Iago água abaixo, não se
esquecendo de antes amarrar uma barra metálica pesada em uma de suas pernas
para que o corpo afundasse.
Após fechar a fonte com a tampa de pedra,
Ernesto foi limpar os rastros de sangue. As manchas que o barman não estava
conseguindo remover no exato local em que Iago caíra foram ocultadas pelo resto
do vinho, que Ernesto despejou no chão para disfarçar o cheiro. Quando terminou
a “faxina”, o homem pôs a cadeira em que Iago estava sentado no devido lugar,
deu um enorme suspiro e sentiu ter finalmente cumprido sua missão com o
esperado sucesso.
Quando percebeu que o relógio de uma das
paredes da taberna marcava meia-noite em ponto, Ernesto decidiu apagar as luzes
do estabelecimento para fechar de vez por aquela noite. Antes de o homem
mover-se até o interruptor para apagar as luzes, uma repentina queda de energia
escureceu o ambiente, deixando apenas a chama da lareira iluminando o local,
que, em menos de 10 segundos, também desapareceu. Assustado com aquela infeliz
coincidência, Ernesto pegou uma vela de uma das gavetas do armário de bebidas e
a acendeu, caminhando em seguida às escadas que levariam até seus aposentos. Apesar
da escuridão, o barman não mais se sentiu incomodado quando pôs os pés no
quarto; sentindo-se cansado, resolveu dormir para em seguida vivenciar novos e
ótimos dias sem o maldito e infame cigano caloteiro.
Continua...
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