terça-feira, 25 de agosto de 2015

Conserva - Parte I

CONSERVA
Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição


PARTE I

 Ernesto não mais aguentava os abusos de Iago. O velho cigano, bastante conhecido entre a vizinhança do vilarejo, que era um dos principais fregueses da oculta e mal frequentada taberna da família de Ernesto – o estabelecimento pertencera ao seu bisavô, avô e pai - , estava abusando de seus calotes com o pobre barman, além causar inúmeros prejuízos durante suas bebedeiras e ameaças de revelar acontecimentos futuros para o dono do estabelecimento, que era bastante supersticioso.

 O barman, cujos nervos estavam ultimamente por um fio, temia perder a paciência com aquele inconveniente “cigano” que tanto lhe tirava do sério. Quando o ódio infelizmente toma conta da cabeça de um homem, este deve preservar ao máximo o mínimo de razão que ainda lhe resta. Infelizmente, esse não foi o caso de Ernesto.

 Recentemente viúva, uma prima de qual o pobre barman sempre fora perdidamente apaixonado faria uma visita a sua casa, que ficava acima do seu estabelecimento comercial, na próxima semana; e Ernesto não gostaria que Vivian o visse sendo debochado por um cigano bêbado e velho que se achava superior que os demais. Por isso, veio-lhe em mente uma ideia maligna, da qual ele se arrependeria profundamente mais tarde, mas não naquele momento: Teria de se livrar de Iago.

 Naquela noite de segunda-feira, apenas dois dias depois de planejar, tudo estava pronto. Sentado do lado de trás do balcão de madeira envelhecida, pregado ao chão, também de madeira, do bar, Ernesto esperava ansiosamente seu único cliente das segundas-feiras. No extenso armário das bebidas atrás do barman, da qual havia várias garrafas de longa data de whiskey e rum, da época em que a taberna de Ernesto vivia seus dias de ouro, o homem teria guardado uma camuflada garrafinha inusitada que, na verdade, era um poderoso veneno que o barman comprara para alguma eventualidade em uma das feiras ciganas que aconteciam no vilarejo anualmente. Apesar de estar com a cabeça absurdamente quente, Ernesto não poupou frieza em sua perturbada mente para eliminar o homem que tanto lhe causava ódio com um elemento fabricado pelo seu próprio povo. Quando o cigano se sufocar com a substância mortal e esta começar a fazer o efeito que causaria sua morte, Ernesto esconderia o corpo dentro de um alçapão que dava para um poço, revestido de cerâmica, cheio de cebolas em conserva (da qual o barman as servia no bar como aperitivo irresponsavelmente há mais de 10 anos). A água que deixava o alimento conservado faria o mesmo com o corpo de Iago até o domingo, quando todos os habitantes do vilarejo iam para a Igreja, exceto Ernesto e os poucos ciganos que lá viviam (que costumavam ficar em casa nas manhãs de domingo e sair apenas durante a noite); dia perfeito o domingo para o barman levar o corpo discretamente para a floresta e enterrá-lo.

 De acordo com o que a prima Vivian dissera, ela chegaria à cidade na próxima segunda-feira. “Imagina se minha prima se deparasse com aquele indivíduo bêbado e mau caráter assim que chegasse a minha taberna?”, pensava Ernesto. “Aquilo deve ser feito, e deve ser hoje!”.

 Às 10 horas da noite em ponto, seu tão “adorado” freguês chega ao bar, já embriagado devido às “abrideiras” que tomara durante a tarde. Iago, esbanjando folga e descontração, cambaleia, chacoalhando as diversas pulseiras que haviam em seu pulso, para o balcão.

- Meu amigo! – Cumprimentou o cigano, avançando perante o balcão para me dar um abraço desajeitado. - Ué? Mas não tem mais ninguém aqui?

Ernesto respirou fundo e respondeu, enquanto preparava um copo de cerveja quente:

- Você é meu único cliente das segundas, não lembra? A maioria do vilarejo trabalha durante a semana...

- E você também! Por isso está aqui, me oferecendo essa maravilha de bebida! – Interrompeu o cigano, virando o copo de cerveja em menos de 5 segundo goela abaixo. – Aliás, sobre a minha conta, acho que a partir do próximo mês vou começar a pagá-la.

- Você está prestes a pagar sua conta, meu caro. – Disse Ernesto para si próprio, como se estivesse pensando alto.

 Iago estava tão bêbado que não havia prestado atenção na possível ameaça da qual eu murmurara. Ernesto resolveu, então, botar meu plano para funcionar. Após servir o velho cigano com outro copo gigante de cerveja amarga quente, o barman virou-se para o armário de bebidas para pegar uma garrafa de um pouco valioso, porém de sabor magnífico, vinho italiano chamado La Gôndola, datado do início da década passada, para servir ao seu “convidado”, juntamente com o veneno dissolvido.

 Percebendo que seria bastante prudente manter a porta da taberna fechada, para que ninguém aparecesse de surpresa e se deparasse com Iago se contorcendo no chão, Ernesto improvisou:

- Está um pouco frio. – Disse a Iago, fingindo estar massageando o peito com as mãos. – Vou acender a lareira.

Iago, quase mergulhando a cabeça por cima dos braços no balcão, concordou com a cabeça. Assim, Ernesto se deslocou para a bela lareira de mármore preto, cujo corpo da chaminé que ficava logo acima da peça rochosa escura, possuía diversas fotos e placas dos velhos tempos em que sua espelunca era um bar de renome, para acender o fogo. Após manter o ambiente aquecido, discretamente, o barman andou em direção à porta e às janelas da taberna, trancando todas.

 Ao finalmente retornar ao seu posto. Ernesto começou a encenação:

- Gosta de ler, cigano?

 Iago, que mal conseguia falar de tão embriagado, respondeu soluçando:

- Bom... depende... hic! Gosto de ler fantasias, ou histórias de suspense... hic!..., mas não costumo ler muito essas coisas. Leio mai... hic!... meus livros de esoterismo e misticismo. 

- Já ouviu falar em Edgar Allan Poe? – Sempre havia um brilho nos olhos de Ernesto quando mencionava seu autor favorito, seja qual fosse a ocasião.

- Ouvir, eu já ouvi. Ler, nunca li! – Respondeu Iago, seguido de uma típica risada forçada de bêbado.

- Uma pena, eu diria. Mas, tudo bem. Há um conto dele que sempre me deixou impressionado, “O Barril de Amontillado”. Conta a história de um homem, cansado dos abusos e implicâncias de um amigo, Fortunato, que decide se vingar, levando o tal provocador para o subsolo de uma adega, para procurar uma valiosa garrafa de vinho, e o emparedando nos tijolos do local escuro e esquecido por Deus e o mundo.

 Iago, que, como era de se esperar, não estava prestando atenção e jamais desconfiaria que Ernesto faria dele um Fortunato em poucos minutos, respondeu à aula de literatura do amigo:

- Então... tens uma garrafa dessa de amontinãoseioquê aí contigo? Hic!

 Ernesto se virou para pegar a pouco valiosa garrafa de La Gondola, servir duas taças e jogar uma mísera gota do poderoso veneno em uma delas. Enquanto isso, Iago continuava:

- Ou um barril inteiro, se não se importar? – Dando suas típicas gargalhadas que exalavam um fedor de hálito podre misturado com álcool.

Ernesto respondeu, ao se virar:

- Amontillado eu não tenho, meu caro. Mas, tenho uma coisa melhor. – Ernesto pôs a garrafa de vinho e as duas taças por cima do balcão da taberna. – Imagino que você não irá recusar esse néctar dos deuses.

 Iago, cujos olhos estavam enfim totalmente abertos, respondeu, bastante entusiasmado:

- Não precisei consultar as cartas, nem mesmo as estrelas, para saber que hoje eu seria presenteado!

- Nada como uma boa surpresa para o meu único cliente das segundas. Então, saúde! – Disse eu, erguendo minha taça.

- Eu juro que vou repensar nas minhas contas atrasadas. Minha dívida será paga. – Respondeu Iago, erguendo a taça e virando-a goela abaixo, em seguida.

- De fato. – Assentiu Ernesto entre dentes, esperando a mágica acontecer.

 Assim que terminara de engolir a bebida, o cigano caíra para trás com um forte baque no chão, batendo violentamente a cabeça no piso de madeira. Após se contorcer de forma bastante medonha, aos olhos de Ernesto, no chão, Iago finalmente havia perdido todas as sensações humanas que possuía, inclusive a de ter prazer em beber, e capacidades, como respirar. Estava pálido, imóvel, com os olhos bastante esbulhados e espumando pela boca. O barman jamais tinha visto um veneno tão eficiente como aquele, desde a invenção dos refrigerantes.

 Com um discreto sorriso de satisfação no rosto, Ernesto pulou o balcão e foi de encontro ao corpo do velho cigano que no chão de madeira jazia. Olhando claramente para aqueles olhos extremamente abertos, com as pupilas dilatadas, que não mais enxergavam, o barman sentiu um breve remorso, que logo foi aliviando quando este sentiu uma medonha vontade de pisar no rosto do falecido, o que foi feito logo em seguida. Com o impacto do pé de Ernesto, o nariz de Iago quebrou e uma poça de sangue formou-se ao lado de sua cabeça.

 Sabendo que estava na hora de esconder o corpo naquele lugar secreto, onde o cadáver não apodreceria até o domingo, Ernesto logo começou o procedimento. Pegou Iago pelas pernas e o arrastou até o subsolo de sua taberna – que era bem mais limpo e iluminado que o próprio estabelecimento, por ser o local favorito e mais bem cuidado do seu avô, que gostava de controlar a qualidade das bebidas e alimentos -, deixando, de maneira extremamente descuidada, um rastro de sangue pelo piso do estabelecimento. Quando finalmente chegou ao poço, que mais parecia uma fonte de uma praça qualquer, revestido com cerâmica e fechado com uma pesada tampa de pedra (a ideia do poço para guardar alimentos em conserva teria sido do avô de Ernesto, um velho maluco que adorava extravagâncias e fazia de tudo para manter a taberna em funcionamento), o barman despejou Iago água abaixo, não se esquecendo de antes amarrar uma barra metálica pesada em uma de suas pernas para que o corpo afundasse.

 Após fechar a fonte com a tampa de pedra, Ernesto foi limpar os rastros de sangue. As manchas que o barman não estava conseguindo remover no exato local em que Iago caíra foram ocultadas pelo resto do vinho, que Ernesto despejou no chão para disfarçar o cheiro. Quando terminou a “faxina”, o homem pôs a cadeira em que Iago estava sentado no devido lugar, deu um enorme suspiro e sentiu ter finalmente cumprido sua missão com o esperado sucesso.

 Quando percebeu que o relógio de uma das paredes da taberna marcava meia-noite em ponto, Ernesto decidiu apagar as luzes do estabelecimento para fechar de vez por aquela noite. Antes de o homem mover-se até o interruptor para apagar as luzes, uma repentina queda de energia escureceu o ambiente, deixando apenas a chama da lareira iluminando o local, que, em menos de 10 segundos, também desapareceu. Assustado com aquela infeliz coincidência, Ernesto pegou uma vela de uma das gavetas do armário de bebidas e a acendeu, caminhando em seguida às escadas que levariam até seus aposentos. Apesar da escuridão, o barman não mais se sentiu incomodado quando pôs os pés no quarto; sentindo-se cansado, resolveu dormir para em seguida vivenciar novos e ótimos dias sem o maldito e infame cigano caloteiro.


Continua...

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