quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Conserva Parte II

 CONSERVA 

Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição.


                             PARTE II

  As pilhas do relógio da parede precisavam ser trocadas. Desde a meia-noite em ponto daquela terça-feira, o objeto estivera parado. Não se preocupando muito com tal fato, Ernesto aprontava o estabelecimento para a chegada dos clientes. Esperava ver alguns amigos naquela noite fria, para servir altas rodadas de cervejas quentes.

 Mais tarde, um de seus velhos conhecidos chegou à taberna. Um homem de cabelo cacheado, olhos escondidos por um óculos “fundo de garrafa”, que trajava um enorme sobretudo cinzento de frio e um chapéu, deixando os itens no cabide próximo a porta de entrada.

- Timothy, meu velho! – Cumprimentou Ernesto, ao ver seu bom freguês na perto a porta. – O que o traz aqui? 

- Em primeiro lugar, Ernie, minhas pernas. – Brincou o homem. - Em segundo, uma caneca da sua melhor cerveja. Em terceiro, mas não menos importante, um pouco de companheirismo. Onde estão os outros? Peter, Brendan, Iago...?

 Sentindo um leve ódio ao escutar o nome do homem que matara na noite anterior, Ernesto forçou um sorriso e respondeu:

- Peter já deve está chegando, talvez. Iago... eu não o vejo há um bom tempo?

- Nem tanto tempo assim, eu acho. Não lembra do caos que estava aqui no último sábado? Tudo obra do...

 O diálogo de Timothy foi interrompido quando a porta da taberna abriu, revelando outro antigo freguês.

- Adrian! Venha se juntar a nós! – Disse imediatamente Ernesto.

 Adrian, homem baixinho e franzino, decidiu não tirar a cartola que sempre usava. Sentou-se junto a Timothy em frente ao bar e começou a beber e papear com os amigos.

 Após um tempo, Timothy consultara seu relógio de pulso que marcava nove horas da noite. Vendo que estava tarde, decidiu voltar para casa, arrastando Adrian consigo.

- Amanhã é dia de trabalho, companheiro. Temos que estar sóbrios. – Repetia Timothy enquanto arrastava o amigo baixinho para fora da taberna.

 Após se despedir dos fregueses amigos, Ernesto sentiu-se um pouco isolado. Gostava quando a freguesia no seu bar era amigável e, principalmente, de conversar as bobagens da vida com os verdadeiros amigos. Antes de adormecer naquela noite, o barman releu a carta de sua amada prima, criando grandes expectativas para a sua chegada ao vilarejo. Sua última leitura da noite foi mais um conto do seu escritor favorito, Edgar Allan Poe. Após ler “Os Dentes de Berenice”, pegou no sono.

 Na manhã de quarta-feira, Ernesto foi despertado com o toque do telefone que ficava acima da sua mesa de cabeceira. Ainda sonolento e sem saber a hora, o barman atendeu, emitindo uma voz forçada de quem estaria morrendo de sono:

- Alô? – Perguntou ao outro lado da linha, dando um enorme bocejo, em seguida.

- E-Ernesto? – A voz gaguejava.

Preocupado, o barman logo perguntou:

- Quem está falando?

- Ernesto... sou eu... Glória.

Glória era esposa de Timothy, que aceitava perfeitamente as idas do marido à taberna. Até pelo fato dela, professora da escola primária, também visitar o estabelecimento nos finais de semana, para esquecer as crianças chatas da escolinha por um ou dois dias.

- Aconteceu alguma coisa, Glória? Sua voz...

- Timothy morreu! – Disse diretamente a mulher, seguido de soluços e prantos.

 Ernesto ficou sem saber o que dizer. Seu amigo estava com ele há menos de 8 horas. Como Timothy, cheio de vida e saúde, teria morrido?

- O que você está dizendo? – Perguntou o barman, controlando-se para não entrar em desespero.

Glória deu uma pausa nos soluços e tornou a falar.

- Ele... ele simplesmente... começou a vomitar. Vomitar sangue. No vômito dele... Meu Deus... havia algo apodrecido.

- O quê? Apodrecido?

- Aquele cheiro... aquela consistência de sangue prestes a coagular... talvez isso não seja o pior.

 Mais um baque atingira o coração do barman. Como poderia haver outra coisa pior que a morte de um dos melhores amigos? Além de ter sido uma morte deveras tão estranha?

- O que pode ser pior que isso? – Perguntou Ernesto, receoso.

- Adrian também morreu de madrugada. – Respondeu Glória, com a voz ainda trêmula e chorosa.

 Ernesto deixara cair o telefone na mesa de cabeceira. O barman afundou-se na cama, esperando acordar de um terrível pesadelo da qual jamais despertaria.

- Ernesto? Ernesto? Ainda está aí? – Gritava Glória, do outro lado da linha.

 Ao recuperar um pouco os sentidos, o barman voltou ao telefone e perguntou:

- Não me diga que ele também morreu do mesmo jeito que Timothy?
Glória se calou por um momento. Não sabia o que responder, para não parecer algo tolo ou incompreensível.

- De acordo com Elisabeth (esposa de Adrian), sim. E para piorar, exatamente à meia-noite.

- Timothy também? Meia-noite?

- Sim.

- Os corpos já estão com Dicker?

- Ele já examinou os dois, a madrugada inteira. Disse que precisa manda-los para a cidade mais próxima, onde necrotérios mais estruturados farão seus exames para constatar a causa da morte.

- Estou indo para Dicker. 

David Dicker era o dentista, enfermeiro, doutor, cardiologista, parteiro e médico legista do vilarejo. Frequentava também o bar de Ernesto, porém costumava passar mais tempo lá na época em que pertencia ao pai do barman. Era um senhor de idade, talvez o único idoso que frequentava a espelunca, culto e inteligente, que sempre estava disposto a ajudar.

 Chegando ao pequeno necrotério do vilarejo, Ernesto, preocupado, foi logo perguntar a Dicker se havia sido detectado veneno nos corpos dos amigos.

- Não sei dizer exatamente, Ernesto. – Respondeu o doutor. – Não consegui identificar um tipo de substância química, além do álcool ingerido, que não foi uma quantidade capaz de causar morte, até pelo fato de já ter visto situações piores graças à bebida, nem veneno. 
Por isso também que decidir encaminhar os corpos para a cidade.

- Alguma previsão de quando sairá um laudo com a causa das mortes? – Perguntou Ernesto, apreensivo. O barman tinha medo de ser o culpado pelas mortes dos amigos. E se uma gota daquele mortal veneno que tivera dado para Iago tivesse caído acidentalmente nos copos do bar?

- Olha, Ernie... eu não sei dizer. Mas, fique calmo. Sei que sua taberna jamais possuiu alguma bactéria ou coisa do tipo.

 Se o legista soubesse o que o barman mantinha escondido no porão do seu estabelecimento... Ernesto até perguntou se seria necessário alguém fazer uma vistoria na taberna para detectar alguma substância estranha ou bactéria, pois sua preocupação era maior que sua língua. Mas Dicker respondeu que não seria necessário por enquanto.

 Quando estava saindo do necrotério, Ernesto se deparou com Brendan, outro velho amigo, que entraria no local pequeno e gelado para reconhecer os corpos dos companheiros (não acreditara quando Glória lhe dera a notícia). Ao ver Ernesto, o homem, magro e de semblante doente, que trajava um cachecol que parecia lhe apertar o pescoço, com os olhos cheios d’água e o rosto inchado de tanto chorar, abraçou amigavelmente o barman. Ernesto retribuiu o abraço cheio de sentimento e em seguida falou o que os dois precisavam realmente ouvir:

- Precisamos de um trago.

- Aos nossos companheiros – completou Brendan – Rapaz... o que foi que aconteceu? Por que eles fizeram isso com a gente?

- Eu não sei, meu velho... somos só eu, você e Peter, agora. Por falar nisso, onde ele está? Já o avisaram da tragédia?

 Brendan deu um longo suspiro e tornou a falar:

- Sim. Ele está em casa. Não quer falar com ninguém. Você sabe que ele e o Timothy cresceram juntos, foram praticamente criados pela mesma mãe, então... E é verdade... somos só nós 3, agora. Ah, e o Iago também. Não sei se ele já sabe o que aconteceu. Pra falar a verdade, não o vejo há um bom tempo.

 Ao escutar o nome daquele ser humano repugnante da qual havia se livrado para sempre, Ernesto sentiu uma forte energia negativa dentro de si. Como se alguma coisa pior do que a morte de dois dos seus melhores amigos estava prestes a acontecer. O barman, simplesmente, preferiu ignorar o fato de o cigano ainda estar “enterrado” no porão de sua taberna e deu continuidade a conversa:

- Pois é... eu também não sei onde ele está. Deve ter sido convocado para outra feira de ocultismo sem nos avisar, como sempre. – Mentiu.

 Enquanto caminhavam até a casa de Brendan, onde iriam almoçar, os dois homens relembravam as situações engraçadas em que o grupo de amigos haviam se metido ao longo dos anos, como uma vez em que, todos eles bêbados, inventaram de sair na floresta para procurar um Yeti e acabaram se esbarrando em um enorme urso pardo que atualmente enfeitava o chão da biblioteca da casa de Peter. Terminado o almoço, Ernesto e Brendan combinaram uma hora para começar a bebedeira, a fim de amenizar a dor e o sentimento de vazio.

 Às 6 horas em ponto da noite, Brendan chega ao bar. Ernesto, como sabia que Peter não iria comparecer naquela noite, fechou as portas da taberna e a manteve aberta apenas para si e o velho amigo, que já estava se servindo de uma grande dose de conhaque envelhecido.

 Menos de duas horas depois, os homens se encontravam em estado altamente deplorável. Não conseguindo controlar a língua, tampouco as emoções, Ernesto começou a contar coisas que não devia para Brendan, que bem atento escutava passo a passo das confissões do barman.

- Sim! Eu acabei com a raça daquele maldito e imprestável cigano com um veneno do próprio povo dele! – Repetia Ernesto, gargalhando até ficar rouco.

 Brendan não tinha noção da barbárie que estava ouvindo, mas, mesmo assim, decidiu atiçar Ernesto a lhe mostrar o corpo de Iago.
- Eu vou mostrar! – Exclamou Ernesto, ao ser perguntado sobre o corpo. – Vamos lá!

 Levantando-se de uma das mesas e cambaleando para tentar se manter de pé, o barman tirou de um dos bolsos a chave que abria o acesso ao porão e seguiu com o amigo, também sem forças nas pernas, para baixo. Estava escuro e húmido, situações incomuns no lugar mais bem cuidado do estabelecimento. Quando o barman retirou a tampa de pedra que tapava o pequeno poço de cerâmica, Brendan pôde ver o corpo de Iago, totalmente pálido e encharcado, boiando junto às cebolas. Ao se deparar com aquilo, seus sentidos de repente retomaram e um choque tomou conta de sua razão.

- Como... Como você pôde fazer isso?? – Gritou para Ernesto, jogando o barman contra uma parede e levantando-o pela gola do casaco. – Você perdeu o juízo? Tem ideia do que fez?

- Eu estraguei o sabor das cebolas? – Perguntou Ernesto em tom de brincadeira, apesar de estar completamente embriagado e tonto.

A resposta para a sua pergunta foi um belo golpe dos punhos magros de Brendan na cabeça, o que fez o barman apagar. Quando recuperou os sentidos, estava sentado em uma das poltronas que dava para a lareira da taberna.

- Você está bem? – Perguntou Brendan, ao ver que Ernesto recuperara a razão.

 O homem levou a mão à cabeça e percebeu um galo na altura da testa.

- Eu acho que sim. Já estive pior.

- Então? O que você vai fazer?

Ernesto sabia que havia falado o que não devia, mas, mesmo assim, tentou disfarçar:

- Do que está falando?

- Não banque o espertinho comigo, Ernie. Eu sei o que você fez. O corpo de Iago ainda está no poço. Nós precisamos arranjar um meio de nos livrar dele quanto antes.

 Os dois homens estavam preocupados. Não sabiam o que fazer a respeito daquele corpo. Ernesto contara sua ideia a Brendan, de enterrar Iago no domingo, enquanto não haveria ninguém nas ruas. O amigo questionou:

- E qual é o problema de fazer isso de madrugada?

- E se alguém me vir? – Perguntou o barman, extremamente preocupado.

- Você tem mais chances fazendo isso agora, comigo, do que sozinho. Eu sei que não devia, mas vou ajudá-lo.

 Ernesto sentiu, nesse momento, um grande afeto por Brendan. Não se fazia mais amizades como a dele.

 Após elaborar um meticuloso plano para dar fim ao corpo de Iago, os dois amigos esperaram o relógio da catedral do vilarejo dar a primeira badalada do novo dia para botar o plano em ação.

- Preciso concertar meus relógios. – Disse Ernesto. – Desde a meia-noite de hoje, todos estão parados.

- Todos eles pararam ao mesmo tempo?

- Sim, a meia-noite. Por que essa cara?

 A expressão de Brendan mais revelava um homem doente apavorada com determinada situação do que um adulto pronto para exercer um trabalho de extrema responsabilidade.

 Assim que o relógio do vilarejo avisou a todos que a meia-noite chegara, os homens se levantaram da mesa e andaram em direção a escada que levava ao porão.

 Brendan, porém, parou ainda no primeiro degrau, começou a sentir fortes dores dentro do corpo, mas não sabia dizer exatamente de onde vinham. De repente, o homem, que não mais aguentava da dor que se assemelhava a mais de 100 espadas japonesas perfurando seu corpo, caiu escada a baixo. Assustado, Ernesto correu em direção ao seu amigo. Ao tentar levantar o companheiro, este simplesmente começou a gritar e se debater no chão. Ernesto não sabia o que fazer. A pele de Brendan estava começando a ficar pálida, fria e, inexplicavelmente, húmida; por fim, antes do último suspiro agonizante que ainda lhe restava, o homem vomitou litros de sangue que já estavam em estado de coagulação por todos os lados. O cheiro de putrefação exalou pela taberna.

 Ernesto, sem saber o que fazer, ficou sem reação. Estava ainda ajoelhado, ao lado do corpo sem vida de Brendan. Suas roupas sujas do vômito de sangue, suas mãos trêmulas e a expressão de horror estampada em seu rosto, porém, não era nada comparado ao que estaria por vir. 



(Continua...)

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