domingo, 14 de abril de 2013

Fúria



 [Parte I] 

   Acabando-se de ódio por dentro, porém trazendo um calmo, falso e enorme sorriso por fora, Janet aguardava seus pais terminarem de se arrumar para leva-los ao aeroporto, onde iam embarcar numa viagem de quase um mês para o exterior. 

  Janet era um projeto de mulher que acabara de completar 18 anos, porém era mais independente do que qualquer garota de sua idade; sabia dirigir desde os 15 e gostava de andar sozinha, até pelo fato de não ter muitos amigos. Era quieta e sempre muito fria; sempre estivera acima do peso, o que lhe fazia principal alvo de brincadeiras maldosas no colégio, em seus tempos de criança, e agora na universidade. Gostava raramente de sair com suas duas únicas amigas, quando estava muito deprimida ou entediada. Em casa, passava momentos infelizes, por nunca ter recebido atenção dos pais, que davam mais ao seu irmão autista de 8 anos, e desde a morte de seu avô, talvez seu único melhor amigo em toda a vida, a garota caiu em um eterno estado de melancolia. Janet não gostava de morar com sua família pois ninguém a entendia e ela não entendia ninguém e seu sério problema de se relacionar com as pessoas, que enfrentava desde pequena, era forte.

   Quando seus pais enfim terminaram de se arrumar e levar suas malas para o carro, Janet pôde levá-los ao aeroporto, deixando seu irmão com a enfermeira. A garota realmente odiava a ideia de seus pais viajarem após menos de um ano da morte do avô, além do fato de eles a deixarem sozinha com seu irmão doente em casa. Maldito período que meus pais resolveram tirar férias, pensava Janet de instante em instante. Suas preocupações iam além da família; sua faculdade havia entrado em greve há mais de duas semanas e não tinha previsão de quando as aulas recomeçariam e a garota acabara de perder seu primeiro emprego. Janet enviou currículos para vários e bons lugares de sua cidade, mas não foi aceita neles. Resolveu deixar de correr atrás de emprego e dedicar-se aos estudos, que agora haviam sido interrompidos por professores que começaram uma greve estúpida que atrasava a vida dos estudantes. Em outras palavras, Janet estava ociosa. 

   Ao chegar no aeroporto, ajudou seus pais com as malas e ouviu suas últimas advertências antes de embarcarem.

- Lembre-se que Isabel não poderá cuidar do seu irmão nos dias 13 e 14. – Alertou sua mãe. – Ela fará duas provas para um concurso público.

 Ouvir aquilo deixava Janet morrendo por dentro. Até uma enfermeira que cuidava de crianças autistas poderia ter mais sorte que ela na vida.

  Ao se despedir dos pais, Janet sentiu uma raiva que jamais sentira antes por eles e aquilo a deixava mal. Preferiu esquecer tal raiva e deixar as coisas como eram. Quando seus pais finalmente embarcaram, a garota preferiu não voltar imediatamente para casa, mas dar uma volta pela cidade, já que ficaria a maior parte do tempo em casa, ajudando a cuidar do irmão e fazendo as tarefas do lar. Suas duas amigas prometeram lhe visitar nesse período de tédio e marcar alguma programação, o que deixava Janet um pouco contente. Apesar de não gostar muito de sair com pessoas, a companhia de suas parceiras de infância lhe era agradável pois essas eram as únicas que não lhe tiravam sarro por causa do peso e a expressão de melancolia que a garota sempre trazia no rosto.
    

  Quando cansou de circular pela cidade, foi para o prédio que residia. Chegando no apartamento da família, deparou-se com seu irmão gritando, dizendo estar vendo uma pessoa com um martelo ensanguentado e que precisava fugir. A enfermeira Isabel estava tentando controlar o menino, mas este gritava cada vez mais alto e começou a sacudir-se no chão. Janet não queria dar atenção para aquilo, pois já achava normal seu irmão ter certos ataques e depois se acalmar. Passado um tempo, a garota foi ver como estava o pequeno. Jânio, como era chamado, estava sentado numa almofada de frente para a parede com a cabeça baixa e se balançando de um lado para o outro. Quando Janet chegou perto dele, o menino começou a murmurar com sua voz baixa:

- É você. É você. É você. – A casa frase, sua voz mudava de tom discretamente. 

  Janet não estava assustada com aquilo, porém achava estranho seu irmão começar a falar aquilo justamente quando ela estava por perto. “O que será que fiz para ele?” pensava a garota.

  Passados os dias, Janet não recebera notícias da faculdade, não conseguiu um trabalho temporário em alguma loja, nem fora visitada pelas amigas que haviam prometido uma programação, sem falar na eterna dor de cabeça que enfrenta em casa diariamente. A enfermeira do pequeno Jânio não era paga pra fazer serviços domésticos, apenas cuidar do garoto, e era ela que mais causava bagunça na casa, por incrível que parecesse. Janet definitivamente não estava aguentando viver aquilo. Pela primeira vez na vida, sabia que precisava de alguém para conversar ou desabafar o que sentia.  A garota sentia-se mal e presa. Toda vez que faltava algo para Jânio, a enfermeira, que estava começando a ser odiada por Janet, pedia à garota ir ao mercado comprar alimentos específicos que seu irmão comia, apesar de tantas exigências por parte dele quanto a cor, tamanho e quantidade da comida.

   A tal obsessão de Jânio pelo indivíduo com um martelo ensanguentando na mão que iria visita-lo a qualquer instante durou mais alguns dias e sumiu da pobre mente do garoto. Tirando seus tantos problemas decorridos com o autismo, Jânio estava parcialmente bem. O mesmo não podia se dizer de Janet que estava completamente tomada pelo ócio, isolamento, cansaço de não fazer nada e a raiva que crescia cada vez mais em seu psicológico. A garota nem mesmo acreditava que suas amigas lhe esqueceram, não cumprido a promessa de visita-la e chama-la para sair. 

    Foi numa tarde de quinta-feira que Janet não mais aguentou e começou a cabeça chegando até mesmo a empurrar a enfermeira de seu irmão para o lado quando essa lhe parou para perguntar sobre o aumento de salário. Janet não tinha intenção machuca-la, mas afastou- a de sua frente para poder passar para o seu quarto, onde ia se arrumar para finalmente sair para se distrair um pouco naquele final de tarde. A enfermeira Isabel não reclamou nem ameaçou contar para os pais da garota o tal empurrão, fez somente uma cara feia e saiu para vigiar Jânio que falava sozinho na sala de estar. Janet vestiu sua roupa normal de sair, isto é, uma blusa branca, sua jaqueta de couro e calças jeans, calçou seu tênis Converse, pegou suas coisas (chaves, celular, dinheiro e cartões) e saiu sem se despedir do irmão.   A garota resolveu não descer de elevador e foi de escadas até o térreo. Chegando na rua, resolveu caminhar até um cinema há 3 quarteirões que estava exibindo um filme interessante que estava louca para assistir.


[Parte II]
 

     Ao caminhar rumo ao cinema, Janet procurou esquecer o ódio que estava sentindo desde a viagem de seus pais, porém a voz do seu subconsciente não a permitia. Havia ainda uma raiva evoluindo dentro da garota e uma inacabada vontade de fazer algo imprudente para sentir-se bem. Não sabia ela se assistir um filme naquele momento era o melhor que podia fazer, porém fez o possível para desligar a mente de coisas insanas durante algumas horas para aproveitar um pouco a tarde, após semanas de tédio e infortúnios. 

  Chegando ao cinema/teatro, Janet comprou seu ingresso, pegou um refrigerante e entrou na sala escura. Arranjou um bom lugar não tão perto nem distante da enorme tela e acomodou-se para esperar o filme começar. De repente, Janet ouviu duas garotas que conversavam um tanto alto e de forma extravagante entrando na sala e sentando-se nas poltronas que estavam atrás da sua. A garota logo percebeu que as duas meninas eram aquelas que se diziam suas amigas. Uma raiva quase que incontrolável tomou conta de sua pessoa, porém resolveu falar nada por enquanto, apenas escutar a conversa e ter um pouco de controle. Quando finalmente as garotas começaram a mencionar seu nome nos papos, prestou mais atenção.

- Ô, Vera. Não acha que fomos grosseiras por não convidar a Janet pra sair conosco nesses últimos dias? Poxa, nós sempre saímos juntas. – Disse a menina que se chamava Patrícia.

- Sei lá! Ultimamente a Janet andava muito caladona. Deve ser por causa do avô que morreu. Ah, e ela jamais gostou tanto de sair com a gente. – Respondeu Vera.

- Mas nós nos conhecemos desde a educação infantil. 

- E daí? Conheço meu pai desde que nasci e mesmo assim não consigo aturá-lo. Janet é uma garota problemática. Até acho que ela tem mais problemas que o irmão. Ela não passa de uma gorda sem futuro que acha tudo na vida e no mundo ruim. Sinceramente, andar com ela nunca me foi agradável. Acho que todo esse tempo sentia pena dela. Talvez, quando o filme terminar, eu passe em seu apê pra dar um “alô”, pra não dizer que sou ruim.

  Ao ouvir tamanha falsidade, Janet engoliu o choro por estar magoada e controlou-se para ali mesmo não revelar-se para as garotas e começar uma confusão. Ficou ainda mais abismada quando Patrícia disse concordar com as palavras de Vera e, com isso, sentiu-se traída e ainda mais sozinha. 

  Faltava ainda 20 minutos para o filme começar e Janet não sabia se acertava as contas com suas “colegas” lá na sala de cinema ou esperava o filme terminar. Milagrosamente, ouviu Vera falar para Patrícia:

- Vou lá no banheiro passar um pouco de pó na cara. Você vem?

- Não. Tenho alergia a pó-de-arroz e você sabe muito bem disso. – Respondeu Patrícia inocentemente.

- Ah, é mesmo. – Disse Vera fingindo que iria mesmo passar produtos de beleza no nariz.  – Então eu vou e volto num instante.


    Janet não pensou duas vezes e com todo cuidado seguiu Vera até o banheiro que ficava no andar superior, onde havia escada para o acesso. A garota esperou um tempo até entrar no WC e fazer uma “surpresa” para Vera que no momento estava com a cabeça enfiada na pia, inalando o pó branco que a fazia se sentir bem; por sorte, ou não, o banheiro estava completamente vazio. Quando enfim resolveu entrar silenciosa e calmamente, Janet percebeu que a “amiga” estava ainda com a cara quase enfiada dentro de uma das pias e caminhou lentamente até ela. Quando Vera levantou a cabeça, ainda um pouco fora de si devido à inalação da forte substância, limpou o excesso de pó do nariz e abriu os olhos; quando olhou a imagem de Janet acabando-se de ódio atrás dela refletida no espelho, tentou gritar, porém fora silenciada com uma violenta chave de braço dada pela amiga que disse sarcasticamente: 

- Que coisa, queridinha! Fui eu quem acabou te fazendo uma visitinha. 

  Janet então largou Vera que caiu no chão tossindo e sem ar. Depois, puxou a garota pelos longos cabelos loiros e bateu sua cabeça contra a quina do balcão das pias. Batia a cabeça da colega cada vez mais forte, até abrir um ferimento que espirrava sangue para todos os lados, chegando até a manchar a branca de Janet. Quando enfim sentiu o crânio de sua adversária partir-se, largou o corpo sem vida e ensanguentado na garota no chão. Por um tempo, Janet ficou lá observando, acreditando que havia feito o que era certo e riu pela primeira vez após muito tempo. Um pequeno sorriso frio formou-se em sua boca que não mais tremia de raiva, mas de uma certa satisfação.


[Parte III]
      


   Quando de repente a porta do banheiro feminino abriu-se e Patrícia antes de entrar revelou-se estar observando tamanha violência desde o início, paralisada, com a boca e olhos bem abertos e uma assustadora expressão de horror no rosto, Janet levantou-se para vingar-se também da outra “melhor amiga” que não teve tempo de correr. Patrícia foi arremessada por Janet escada a baixo, tendo o pescoço quebrado e, assim, um encontro instantâneo com a morte. 

  Todos que estavam no pequeno saguão do cinema, funcionários, seguranças e pipoqueiros, foram ver o que estavam acontecendo e tentar remover o corpo dali com cuidado até a ambulância chegar. Janet sabia que não conseguiria sair de lá pela porta da frente, então saiu por uma das janelas do banheiro que dava acesso a uma escada de emergência. Sua gordura não facilitou a passagem pela janela, e quando ouviu passos vindos em direção ao banheiro, espremeu-se ainda mais para poder passar, conseguindo com muita sorte e esforço. Para descer a pequena escada de incêndio, a garota levou tempo e ao chegar finalmente no chão correu para seu prédio. As pessoas na rua não paravam de olhar aquela figura correndo desesperadamente, com a camiseta suja de sangue. Muitos chegaram até a tentar abordá-la e chamar a polícia, mas Janet afastava-os com socos e empurrões. 

   Quando finalmente chegou ao prédio, a garota, suada, ofegante e com a blusa completamente manchada de sangue, esbarrou-se acidentalmente no porteiro que, preocupado, perguntou-lhe o que havia acontecido. Janet, porém, não respondeu e foi correndo em direção às escadas para enfim subir até seu apartamento.


  Lá chegando, abriu a porta apressadamente e foi direto para a cozinha tomar um copo d’água com açúcar. Não viu ela que a enfermeira Isabel estava dando o jantar do seu irmão no mesmo local. Isabel, então, levantou-se assustada da mesa para perguntar a Janet o que lhe havia acontecido. Obviamente, a garota sequer deu-lhe atenção, continuava bebendo sua água e vasculhando uma gaveta de ferramentas que ficava ao lado do bebedouro. A enfermeira, mesmo vendo aquele estado horrível na qual Janet encontrava-se, começou a falar: 

- Lembre-se que amanhã é dia 13. Será meu primeiro dia de prova para o concurso. Portanto, poderei vir somente no domingo, se não estiver muito cansada. – Concluiu, percebendo que a garota não lhe dava o mínimo de atenção.

  Ao terminar de falar, virou-se para terminar de dar o jantar do pequeno Jânio justamente quando um martelo atingiu-lhe em cheio no rosto, fazendo com que cinco dentes do seu lado direito da mandíbula pulassem para fora de sua boca juntamente com litros de sangue. Para finalizar com a tão odiada enfermeira aproveitadora e sortuda, Janet ajoelhou-se junto ao seu corpo caído no chão, gritando de dor, e bateu fortemente o martelo contra sua cabeça. A garota sabia que o irmão, apesar de todo seu desligamento do mundo, estaria observando aquela cena abominável e resolveu lhe falar o que estava acontecendo:

- Nós estamos brincando de “carpinteiro”, Jânio. – Disse Janet ao irmão que não sabia se olhava pra comida no prato ou para a irmã. - A Isabel era um pedaço de madeira.

- É. – Concordou.

   Janet então levantou-se e começou a andar lentamente até seu irmão. Suas mãos estavam tão sujas de sangue quanto sua blusa que já foi branca. 

- A Isabel era a madeira. Sabe quem é a carpinteira na brincadeira? – Perguntou a garota.
 
- É você! – O menino olhava agora somente para a irmã. – É você!

- Sim! – Janet estava gargalhando sarcasticamente. – Imaginei que você diria isso, seu retardadinho de merda! Sabe você quem é agora a madeira?

- É você.

- Pare de dizer isso, cacete!

- É você!

  Janet não mais estava sorriso. Sentia um inacabado ódio do irmão e desejava acabar com ele naquele mesmo instante. Quando chegou perto o suficiente de atacar o garoto com o martelo, percebeu que ele não se movia, nem mesmo mostrava estar com medo, apenas dizia sua tradicional frase, cada vez mais alto. Janet, então, ergueu o martelo, ameaçando acertar em cheio a cabeça do irmão, porém, nesse momento, o porteiro do prédio havia entrado preocupado no apartamento por ter visto a garota ensanguentada no hall de entrada e ter escutado os gritos da enfermeira.

  Paralisado com o que estava presenciando, o porteiro gaguejou: 

- J-Janet, por favor, la-largue esse martelo. Largue!



  Janet de repente não quis mais ouvir seu subconsciente maligno. Largou imediatamente o martelo no chão enquanto olhava para o irmão e o porteiro com as calças provavelmente sujas. A garota, então, deu um grito muito alto e desafinado, correu em direção a uma das janelas de vidro da cozinha e atravessou o vidro, encontrando-se forte e violentamente com o chão após uma queda de 13 andares. A força do impacto fê-la perder um olho, quebrar a mandíbula, além de costelas e diversas partes do corpo e ter a cabeça completamente arrebentada, formando uma enorme poça de sangue no local. 

   Após tamanha desgraça que ocorrera com a família de Janet, seus pais foram processados por abandonar um menor de condições precárias com uma garota que apresentava um certo tipo de psicopatia e após diversos processos, acabaram perdendo a guarda do pequeno Jânio. O garoto nunca mais teve a capacidade de falar, depois do que havia presenciado. Jânio, então, fora mandado para um centro especial para pessoas com autismo, local onde morou até os 18 anos. Ao atingir a maior idade, foi transferido para a casa de um tio e acabou morrendo lá, vítima de uma forte martelada na cabeça dada pelo próprio.






  

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