terça-feira, 2 de agosto de 2016

Conto - A Divina Carona

No tranquilo entardecer, numa das mais vazias e silenciosas estradas na região oeste do Estado, onde normalmente há apenas o tráfego de alguns caminhões de carga ou transportes intermunicipais, o caminhoneiro Joshua, mais conhecido nas redondezas pelo seu eficiente trabalho e sua religiosidade, estava prestes a fazer uma entrega a menos de 88 km.

 Não sabia o velho trabalhador, que atualmente possuía dificuldades ao dirigir por sempre imprensar a enorme pança no volante do caminhão, que estava prestes a passar por uma experiência no mínimo desagradável.

 Poucos metros do transporte de Joshua, estava sentado em uma das paradas de ônibus intermunicipais um homem pálido, de postura ereta, portando uma peculiar maleta e trajando um terno negro e óculos “fundo de garrafa”, o que simbolizava um ato grau de miopia sofrida pelo pobre diabo. Tal indivíduo, que aguardava atentamente pelo seu transporte, chamava-se Heitor.

 Ao escutar de longe um possível ônibus intermunicipal vindo em sua direção, Heitor levantou-se do acento para avistar o transporte, sentindo-se aliviado pelo fato de já estar escurecendo naquela estrada silenciosamente vazia. Percebendo que o barulho de motor se tratava de um mero caminhão de carga, fez um gesto com o dedo polegar direito, anunciando carona. Afinal, além de acreditar que ainda existe a quase extinta boa vontade das pessoas, Heitor não queria permanecer naquele lugar deserto sozinho. 

Percebendo, por trás do chaveiro de crucifixo pendurado ao espelho retrovisor fixado ao vidro frontal do veículo, aquele sinal de carona feito por um completo desconhecido, Joshua pareceu hesitar primeiramente, mas logo parou o caminhão para atender ao pedido, parecendo não se importar com possíveis riscos.

 Levantando a janela automática do banco de carona, o velho caminhoneiro obeso esperou que o jovem pálido e de aparência enferma pudesse se aproximar.

- Boa tarde! – Cumprimentou Heitor, ao chegar mais perto do caminhão.

- Bom final de tarde, na verdade. – Corrigiu Joshua, dando um sorriso amigável para o estranho. – Deseja uma carona, meu irmão? Nenhum filho de Deus merece ficar sozinho numa estrada como essa?

- Ahh, sim! Por favor. – Respondeu Heitor, sem saber tão bem o que falar. – Estou indo para a próxima estação de ônibus. Acho que fica a uns 40 km daqui. 

Surpreso, Joshua respondeu:

- Ótimo! Preciso entregar essa carga pouco depois da estação. Pode subir, irmão!

Heitor, então, lentamente subiu no caminhão e se acomodou no banco de carona do caminhão. O rapaz percebeu acima do painel do carro inúmeras imagens de santos e utensílios religiosos, sendo rapidamente interrompido com a enorme mão de Joshua sendo estendida na sua frente.

- Meu nome é Joshua, por sinal.

- Heitor. – Respondeu o rapaz, apertando a mão do motorista.

- É um prazer conhece-lo, Heitor. O que fazia um rapaz tão jovem e bem vestido na beira da estrada, sem mais ninguém ao redor?

 Não sabendo o que responder primeiramente, Heitor fechou rapidamente os olhos para procurar encaixar as palavras na mente e finalmente respondeu:

- Bom, eu estava esperando um ônibus que pudesse me levar para a estação. Preciso estar amanhã de manhã na capital.

- Negócios, lazer ou família? – Perguntou o caminhoneiro interessado.

- Funeral. – Respondeu Heitor, olhando atentamente para as imagens religiosas a sua frente.

 Joshua desvia o olhar da estrada e olha espantado para o seu convidado:

- Eu sinto muitíssimo! Alguém da sua família?

- Na verdade, um amigo meu de longa data. – Respondeu o rapaz com a voz um tanto trêmula. – Acho que talvez o único amigo que tive na vida. Nunca fui de me socializar com as pessoas, pra falar a verdade.

- Acho que isso explica suas roupas pretas e seu semblante tão triste, irmão. – Falou Joshua, como se estivesse consolando Heitor.

– Creio que seu amigo agora está com Deus. Ele sabe muito bem o que faz, acredite em mim.

 Heitor realmente não se sentiu bem após aquele comentário extremamente religioso do motorista. Não podia iniciar uma discussão a respeito de religião. Preferiu ficar calado, mas não tirou a expressão de desconforto do rosto. Se o rapaz começasse a falar sobre o que pensa, certamente iria estregar a carona. Heitor jamais fora uma pessoa amigável, tampouco compreensiva com as outras.

 Cansado do silêncio, e com extrema vontade de comentar o possível fanatismo religioso de seu motorista, Heitor começou:

– Não pude deixar de notar que o senhor é bastante religioso...

 Não tirando os olhos da estrada, Joshua percebeu um certo desconforto na voz de seu carona ao começar a comentar sobre sua religiosidade.

- De fato, meu filho. Eu vivo para acreditar e servir ao Senhor. Devo fazer sempre fazer aquilo que Ele deseja e, com certeza, faria, inclusive não deixar um desconhecido sozinho numa estrada à noite. – Alegou o caminhoneiro.

 Heitor refletiu a respeito de o caminhoneiro fazer tudo que sua entidade religiosa suprema desejaria ou faria. Pondo sua maleta sobre os joelhos e melhor se acomodando no banco de carona, o rapaz decidiu debater com seu motorista “salvador”.

- Então... quer dizer que seu Deus daria uma carona para qualquer desconhecido na estrada?

- Como assim, meu jovem? – Riu Joshua, percebendo depois que não havia expressão de brincadeira no olhar de Heitor.

 O motorista pigarreou e procurou responder:

- Pois bem, tenho certeza que o Senhor teria a decência... quero dizer... a compaixão de não deixar um filho Seu sozinho em um lugar abandonado. Correndo riscos de ser assaltado ou, que o Senhor nos livre, assassinado.

 Heitor deu um leve sorriso no canto esquerdo da boca, como se estivesse debochando da argumentação que acabara de ouvir, o que não deixou Joshua confortável.

- Minha fé o incomoda, meu rapaz? – Questionou o caminhoneiro, parecendo nervoso.

- Não, é claro que não! – Respondeu o rapaz de preto, que ainda mantinha aquela expressão sarcástica no seu rosto magro. – Só acho engraçado pensar que Deus ajudaria alguém sabendo dos terríveis pecados cometidos por essa pessoa. Eu sei que vocês acreditam que ele pode ver e saber de tudo a respeito de um indivíduo, - Heitor tira a maleta dos joelhos e coloca embaixo do acento – mas, não seria mais prudente Ele deixar que tal pessoa, de acordo com o nível das maldades por ela cometidas, passar por um desafio antes? Como se fosse um julgamento?

 Intrigado com o posicionamento do jovem rapaz, Joshua respondeu:

- Não cabe ao Senhor julgar um de seus filhos, por mais terrível que essa pessoa seja. Sim, o principal papel de Deus é guiar os seus filhos para o bem.

- Um serial killer, ou um pedófilo estuprador não são filhos de Deus, então? Uma pessoa de religião diferente, que são as mais condenadas desde os primórdios da humanidade, não são filhas do Deus a quem elas veneram?

 Joshua sentiu uma peculiar onda de raiva invadir seu consciente. Não queria discutir com o passageiro, mas também não queria sofrer tamanho desaforo dentro do seu próprio caminhão.

- Não foi isso que eu quis dizer! – Irritou-se o caminhoneiro. – Não cabe a Deus julgar esse tipo de gente na Terra. No além da vida, sim, juntamente com o diabo. Cabe a tal alma, porém, construir seu destino pro meio de seus atos. Esta só terá salvação se suas realizações na Terra forem feitas em nome do Senhor. Em nome do Senhor!

 Fez-se uma breve pausa, até Heitor, com frieza na voz, perguntou:

- Matar alguém em nome do seu Deus vai te levar para o céu, então?

 Joshua percebeu a frieza na voz de Heitor naquela pergunta. Até o suor que escorria de sua testa gelou e suas mãos começaram a tremer enquanto seguravam o volante acima da barriga. O caminhoneiro não estava confortável com a presença daquele estranho rapaz no veículo, mesmo acreditando que completar a carona seria a coisa certa a se fazer. Porém, o medo pareceu tomar conta daquela pobre alma que dirigia o caminhão.

- Você não respondeu minha pergunta. – Exclamou Heitor, quebrando o silêncio que lá dentro do transporte se fazia. – Nem mesmo me esclareceu se pessoas de outras religiões também estão condenadas.

- Não, não estão. – Respondeu Joshua, por fim, ainda trêmulo e nervoso.

- Então, somente os assassinos, estupradores, ladrões e pedófilos estão condenados, independente de cor, raça, orientação sexual? – Perguntou Heitor olhando agora atentamente para Joshua.

- Eu acho que sim.

- “Acha que sim”? Você quer dizer que aqueles que fazem isso em nome do Senhor, ou de qualquer Deus, está perdoado, então?

- Só existe um Deus! – Gritou Joshua.

- Me desculpe, senhor. Mas, talvez essa não seja a verdade.

 O caminhoneiro freou bruscamente o veículo, sinalizando que o caroneiro devia sair de lá imediatamente.

- Acho melhor você seguir o seu caminho sozinho.

 Chocado com a atitude de Joshua, Heitor tentou se desculpar, mas o caminhoneiro já havia destravado as portas.

- Desculpe-me por qualquer transtorno. – Disse o rapaz ao sair do veículo, esquecendo lá dentro sua maleta.

 Menos de dois minutos depois, Joshua sentiu um leve arrependimento, que logo após se tornou extremamente forte. Afinal, ele devia fazer o que achava que era certo, independente de tudo. Foi então que ele percebeu que Heitor havia esquecido sua maleta logo abaixo do banco de carona. Usando o utensílio como álibi, o caminhoneiro parou o veículo, na esperança de que o rapaz pudesse correr até lá para buscar sua maleta.

 Percebendo a falta do seu utensílio, assim como o fato do caminhão ter parado a poucos metros de distância, Heitor correu em direção ao veículo para pegar sua maleta, esperando também que Joshua tenha mudado de ideia. A noite já caíra e a estrada esteva mergulhada na escuridão, cuja única iluminação vinha de um poste que estava parado logo acima do transporte de carga do velho caminhoneiro religioso.

 Chegando perto da janela aberta do lado do carona do caminhão, Heitor viu que Joshua segurava a maleta esquecida.

- Oi... eu... esqueci minha maleta. – Começou a falar.

- Acho que percebi. – Respondeu Joshua, entregando o utensílio para o rapaz de preto.

- Muito obrigado. – Agradeceu Heitor, simulando que ia se afastar do veículo.

- Espere um minuto! – Ordenou Joshua. – Tenho uma coisa para você. – Disse, mexendo em um dos bolsos da jaqueta jeans que estava vestindo.

 Curioso com aquilo, Heitor se aproximou do veículo e logo foi surpreendido por uma peculiar fisgada em seu pescoço, fisgada essa ocasionada por um dardo venenoso atirado por Joshua, assim que tirou a mão do bolso.

 Heitor, então, sentiu se engasgar com a própria saliva que agora espumava em sua boca. Suas pernas não mais sustentavam seu corpo. Estavam trêmulas. O rapaz cai no chão e sente a tremedeira se expandir para o seu corpo inteiro, chegando principalmente à cabeça.

 Ao se contorcer na estrada, o rapaz batia forte a cabeça no asfalto, fazendo sair sangue pelas orelhas. Por fim, Heitor tentou dar seu último suspiro antes que seus olhos não mais pudessem enxergar a vida. Suas pupilas dilataram, seu corpo congelou, não havia mais bombeamento de sangue, tampouco atividade cerebral. Joshua ainda estava profundamente arrependido por não ter feito aquilo de uma maneira mais limpa, assim como todos os outros caroneiros que, segundo o velho caminhoneiro, não tinham respeito pelo nome do Senhor e precisavam imediatamente ter a alma julgada por Ele ou pelo Anjo Caído.

 Com dificuldades de sair do caminhão, por conta da sua gordura, Joshua saltou para fora do veículo e arrastou o corpo de Heitor até o compartimento de carga. Abrindo a escotilha, o caminhoneiro lutou para poder encaixar o corpo do rapaz entre os outros pecadores que lá jaziam. Sua carga estava cheia de corpos sem vida que seriam transportados para diferentes universidades de medicina do país. Afinal, Joshua era um caminhoneiro entregador confiável do interior daquele Estado. Mal sabia o povo que o velho obeso que realizava todos os serviços, principalmente em nome do Senhor.