Não sabia o velho trabalhador, que atualmente
possuía dificuldades ao dirigir por sempre imprensar a enorme pança no volante
do caminhão, que estava prestes a passar por uma experiência no mínimo
desagradável.
Poucos metros do transporte de Joshua, estava
sentado em uma das paradas de ônibus intermunicipais um homem pálido, de
postura ereta, portando uma peculiar maleta e trajando um terno negro e óculos
“fundo de garrafa”, o que simbolizava um ato grau de miopia sofrida pelo pobre
diabo. Tal indivíduo, que aguardava atentamente pelo seu transporte, chamava-se
Heitor.
Ao escutar de longe um possível ônibus
intermunicipal vindo em sua direção, Heitor levantou-se do acento para avistar
o transporte, sentindo-se aliviado pelo fato de já estar escurecendo naquela
estrada silenciosamente vazia. Percebendo que o barulho de motor se tratava de
um mero caminhão de carga, fez um gesto com o dedo polegar direito, anunciando
carona. Afinal, além de acreditar que ainda existe a quase extinta boa vontade
das pessoas, Heitor não queria permanecer naquele lugar deserto sozinho.
Levantando a janela automática do banco de carona,
o velho caminhoneiro obeso esperou que o jovem pálido e de aparência enferma
pudesse se aproximar.
- Boa
tarde! – Cumprimentou Heitor, ao chegar mais perto do caminhão.
- Bom final
de tarde, na verdade. – Corrigiu Joshua, dando um sorriso amigável para o
estranho. – Deseja uma carona, meu irmão? Nenhum filho de Deus merece ficar
sozinho numa estrada como essa?
- Ahh, sim!
Por favor. – Respondeu Heitor, sem saber tão bem o que falar. – Estou indo para
a próxima estação de ônibus. Acho que fica a uns 40 km daqui.
- Ótimo!
Preciso entregar essa carga pouco depois da estação. Pode subir, irmão!
Heitor,
então, lentamente subiu no caminhão e se acomodou no banco de carona do
caminhão. O rapaz percebeu acima do painel do carro inúmeras imagens de santos
e utensílios religiosos, sendo rapidamente interrompido com a enorme mão de
Joshua sendo estendida na sua frente.
- Meu nome
é Joshua, por sinal.
- Heitor. –
Respondeu o rapaz, apertando a mão do motorista.
- É um
prazer conhece-lo, Heitor. O que fazia um rapaz tão jovem e bem vestido na
beira da estrada, sem mais ninguém ao redor?
Não sabendo o que responder primeiramente,
Heitor fechou rapidamente os olhos para procurar encaixar as palavras na mente
e finalmente respondeu:
- Bom, eu
estava esperando um ônibus que pudesse me levar para a estação. Preciso estar
amanhã de manhã na capital.
- Negócios,
lazer ou família? – Perguntou o caminhoneiro interessado.
Joshua desvia o olhar da estrada e olha
espantado para o seu convidado:
- Eu sinto
muitíssimo! Alguém da sua família?
- Na
verdade, um amigo meu de longa data. – Respondeu o rapaz com a voz um tanto
trêmula. – Acho que talvez o único amigo que tive na vida. Nunca fui de me
socializar com as pessoas, pra falar a verdade.
- Acho que
isso explica suas roupas pretas e seu semblante tão triste, irmão. – Falou
Joshua, como se estivesse consolando Heitor.
– Creio que seu amigo agora está
com Deus. Ele sabe muito bem o que faz, acredite em mim.
Heitor realmente não se sentiu bem após aquele
comentário extremamente religioso do motorista. Não podia iniciar uma discussão
a respeito de religião. Preferiu ficar calado, mas não tirou a expressão de
desconforto do rosto. Se o rapaz começasse a falar sobre o que pensa,
certamente iria estregar a carona. Heitor jamais fora uma pessoa amigável,
tampouco compreensiva com as outras.
Cansado do silêncio, e com extrema vontade de comentar
o possível fanatismo religioso de seu motorista, Heitor começou:
– Não pude
deixar de notar que o senhor é bastante religioso...
Não tirando os olhos da estrada, Joshua
percebeu um certo desconforto na voz de seu carona ao começar a comentar sobre
sua religiosidade.
- De fato,
meu filho. Eu vivo para acreditar e servir ao Senhor. Devo fazer sempre fazer
aquilo que Ele deseja e, com certeza, faria, inclusive não deixar um
desconhecido sozinho numa estrada à noite. – Alegou o caminhoneiro.
Heitor refletiu a respeito de o caminhoneiro
fazer tudo que sua entidade religiosa suprema desejaria ou faria. Pondo sua
maleta sobre os joelhos e melhor se acomodando no banco de carona, o rapaz
decidiu debater com seu motorista “salvador”.
- Então...
quer dizer que seu Deus daria uma carona para qualquer desconhecido na estrada?
- Como
assim, meu jovem? – Riu Joshua, percebendo depois que não havia expressão de
brincadeira no olhar de Heitor.
O motorista pigarreou e procurou responder:
- Pois bem,
tenho certeza que o Senhor teria a decência... quero dizer... a compaixão de
não deixar um filho Seu sozinho em um lugar abandonado. Correndo riscos de ser
assaltado ou, que o Senhor nos livre, assassinado.
Heitor deu um leve sorriso no canto esquerdo
da boca, como se estivesse debochando da argumentação que acabara de ouvir, o
que não deixou Joshua confortável.
- Minha fé
o incomoda, meu rapaz? – Questionou o caminhoneiro, parecendo nervoso.
- Não, é
claro que não! – Respondeu o rapaz de preto, que ainda mantinha aquela
expressão sarcástica no seu rosto magro. – Só acho engraçado pensar que Deus
ajudaria alguém sabendo dos terríveis pecados cometidos por essa pessoa. Eu sei
que vocês acreditam que ele pode ver e saber de tudo a respeito de um
indivíduo, - Heitor tira a maleta dos joelhos e coloca embaixo do acento – mas,
não seria mais prudente Ele deixar que tal pessoa, de acordo com o nível das
maldades por ela cometidas, passar por um desafio antes? Como se fosse um
julgamento?
Intrigado com o posicionamento do jovem rapaz,
Joshua respondeu:
- Não cabe
ao Senhor julgar um de seus filhos, por mais terrível que essa pessoa seja.
Sim, o principal papel de Deus é guiar os seus filhos para o bem.
- Um serial
killer, ou um pedófilo estuprador não são filhos de Deus, então? Uma pessoa de
religião diferente, que são as mais condenadas desde os primórdios da
humanidade, não são filhas do Deus a quem elas veneram?
Joshua sentiu uma peculiar onda de raiva
invadir seu consciente. Não queria discutir com o passageiro, mas também não
queria sofrer tamanho desaforo dentro do seu próprio caminhão.
- Não foi
isso que eu quis dizer! – Irritou-se o caminhoneiro. – Não cabe a Deus julgar
esse tipo de gente na Terra. No além da vida, sim, juntamente com o diabo. Cabe
a tal alma, porém, construir seu destino pro meio de seus atos. Esta só terá
salvação se suas realizações na Terra forem feitas em nome do Senhor. Em nome
do Senhor!
Fez-se uma breve pausa, até Heitor, com frieza
na voz, perguntou:
- Matar
alguém em nome do seu Deus vai te levar para o céu, então?
Joshua percebeu a frieza na voz de Heitor naquela
pergunta. Até o suor que escorria de sua testa gelou e suas mãos começaram a
tremer enquanto seguravam o volante acima da barriga. O caminhoneiro não estava
confortável com a presença daquele estranho rapaz no veículo, mesmo acreditando
que completar a carona seria a coisa certa a se fazer. Porém, o medo pareceu
tomar conta daquela pobre alma que dirigia o caminhão.
- Você não
respondeu minha pergunta. – Exclamou Heitor, quebrando o silêncio que lá dentro
do transporte se fazia. – Nem mesmo me esclareceu se pessoas de outras
religiões também estão condenadas.
- Não, não
estão. – Respondeu Joshua, por fim, ainda trêmulo e nervoso.
- Então,
somente os assassinos, estupradores, ladrões e pedófilos estão condenados,
independente de cor, raça, orientação sexual? – Perguntou Heitor olhando agora
atentamente para Joshua.
- Eu acho
que sim.
- “Acha que
sim”? Você quer dizer que aqueles que fazem isso em nome do Senhor, ou de
qualquer Deus, está perdoado, então?
- Só existe
um Deus! – Gritou Joshua.
- Me
desculpe, senhor. Mas, talvez essa não seja a verdade.
O caminhoneiro freou bruscamente o veículo,
sinalizando que o caroneiro devia sair de lá imediatamente.
- Acho
melhor você seguir o seu caminho sozinho.
Chocado com a atitude de Joshua, Heitor tentou
se desculpar, mas o caminhoneiro já havia destravado as portas.
-
Desculpe-me por qualquer transtorno. – Disse o rapaz ao sair do veículo,
esquecendo lá dentro sua maleta.
Menos de dois minutos depois, Joshua sentiu um
leve arrependimento, que logo após se tornou extremamente forte. Afinal, ele
devia fazer o que achava que era certo, independente de tudo. Foi então que ele
percebeu que Heitor havia esquecido sua maleta logo abaixo do banco de carona.
Usando o utensílio como álibi, o caminhoneiro parou o veículo, na esperança de
que o rapaz pudesse correr até lá para buscar sua maleta.
Percebendo a falta do seu utensílio, assim
como o fato do caminhão ter parado a poucos metros de distância, Heitor correu
em direção ao veículo para pegar sua maleta, esperando também que Joshua tenha
mudado de ideia. A noite já caíra e a estrada esteva mergulhada na escuridão,
cuja única iluminação vinha de um poste que estava parado logo acima do transporte
de carga do velho caminhoneiro religioso.
Chegando perto da janela aberta do lado do
carona do caminhão, Heitor viu que Joshua segurava a maleta esquecida.
- Oi...
eu... esqueci minha maleta. – Começou a falar.
- Acho que
percebi. – Respondeu Joshua, entregando o utensílio para o rapaz de preto.
- Muito
obrigado. – Agradeceu Heitor, simulando que ia se afastar do veículo.
- Espere um
minuto! – Ordenou Joshua. – Tenho uma coisa para você. – Disse, mexendo em um
dos bolsos da jaqueta jeans que estava vestindo.
Curioso com aquilo, Heitor se aproximou do
veículo e logo foi surpreendido por uma peculiar fisgada em seu pescoço,
fisgada essa ocasionada por um dardo venenoso atirado por Joshua, assim que
tirou a mão do bolso.
Heitor, então, sentiu se engasgar com a
própria saliva que agora espumava em sua boca. Suas pernas não mais sustentavam
seu corpo. Estavam trêmulas. O rapaz cai no chão e sente a tremedeira se expandir
para o seu corpo inteiro, chegando principalmente à cabeça.
Ao se contorcer na
estrada, o rapaz batia forte a cabeça no asfalto, fazendo sair sangue pelas
orelhas. Por fim, Heitor tentou dar seu último suspiro antes que seus olhos não
mais pudessem enxergar a vida. Suas pupilas dilataram, seu corpo congelou, não
havia mais bombeamento de sangue, tampouco atividade cerebral. Joshua ainda
estava profundamente arrependido por não ter feito aquilo de uma maneira mais
limpa, assim como todos os outros caroneiros que, segundo o velho caminhoneiro,
não tinham respeito pelo nome do Senhor e precisavam imediatamente ter a alma
julgada por Ele ou pelo Anjo Caído.
Com dificuldades de sair do caminhão, por
conta da sua gordura, Joshua saltou para fora do veículo e arrastou o corpo de
Heitor até o compartimento de carga. Abrindo a escotilha, o caminhoneiro lutou
para poder encaixar o corpo do rapaz entre os outros pecadores que lá jaziam.
Sua carga estava cheia de corpos sem vida que seriam transportados para
diferentes universidades de medicina do país. Afinal, Joshua era um caminhoneiro
entregador confiável do interior daquele Estado. Mal sabia o povo que o velho
obeso que realizava todos os serviços, principalmente em nome do Senhor.