Não imaginei que
seria convidado à festa de aniversário do filho caçula do “Coronel de
Açougueiro”, apelido dado pelos habitantes do pequeno município no oeste do país ao governante
militar local muito querido pelos privilegiados financeiramente e visto como o demônio
em forma de um homem baixo, franzino, porém barrigudo, de longo bigode preto e chapéu pela classe baixa, devido sérios problemas ocorridos no
passado, entre eles, o fato de o coronel ter ignorado o sumiço repentino de 5
crianças de famílias pobres no município.
Como único herdeiro
de um famoso empresário e senhor de engenho, que falecera recentemente, tive
que largar meus queridos estudos de direito da Europa para voltar ao meu
país de origem, a fim de administrar todo o capital a mim concedido e terminar
o que meu pai começou. Jamais quis pertencer à “nobreza” local. Pessoas ricas,
inúteis e fúteis que nada, ou muito pouco, sabem das coisas me deixam enojado. Infelizmente,
para não ser visto como antipático pela classe “dominante”, resolvi fazer o
papel de rico sem caráter, algo que tenho a tristeza, porém nenhum remorso, de
afirmar que meu pai já foi.
O Coronel de
Açougueiro não costumava deixar pessoas entrarem em sua propriedade. Sempre
fazia suas festas na sede da prefeitura local, ou em casas de recepções. Nenhum
habitante do município, tampouco pessoas de fora, era convidado para passar um
dia em sua residência. Porém, no aniversário de 8 anos do filho mais jovem, o governante
resolveu festejar com uma bonita celebração dentro da propriedade, pela
primeira vez.
Quando lá cheguei,
no dia da fatídica festa, deparei-me com um belo jardim, através dos portões de
metal que impediam estranhos de entrar. O local era bastante esverdeado e tal
coloração era bastante visível mesmo à noite; havia esculturas gregas nos jardins,
uma enorme fonte que despejava a mais cristalina água e a passagem até o
casarão, feita a partir de uma peculiar estrada de pedras, ela iluminada a luz
de tochas flamejantes. Com um presente na mão, um sorriso forçado no rosto, os
cabelos cacheados ensopados de banha e o sobretudo esquentando (até demais) o
meu corpo, subi o pequeno degrau que levava até a porta e fui recebido pelo
mordomo; este, de nariz empinado, guiou-me até o salão de festas da casa. Ao
passar pelo corredor principal, não pude deixar de notar a peculiaridade das
estátuas que lá havia. Eram bonecos de cera extremamente bem trabalhados de pessoas
jovens, a maioria crianças, e alguns animais; as estátuas estavam localizadas
em fileiras, nos dois lados do extenso e largo corredor. Uma decoração
diferente. Eu jamais vi algo parecido em nenhuma residência, apenas em museus.
Ao finalmente chegar
à recepção festiva infantil, que mais parecia aquele típico baile formal de
ricaços que amam explorar o ego, fui apresentado, deixei o presente com o
pequeno aniversariante e cumprimentei o anfitrião. Não pude deixar de elogiar
aquela brilhante coleção de bonecos de cera.
- Por acaso está pensando em abrir um museu de cera com aquelas
peças, senhor? – O Coronel era muito amigo de meu pai e eu o conhecia desde
criança, portanto, era comum uma pequena intimidade entre nós, apesar de não
vê-lo há anos e ser a primeira vez que pisava em sua residência.
O Coronel riu e respondeu sarcasticamente,
para entrar na descontração que eu, ainda não sei por que diabos, causara:
- Ah, magnífica ideia, jovem Souza! – Começou a gargalhar,
devia estar ficando bêbado. – Amanhã de manhã providenciarei mais bonecos, a
fim de abrir um museu de cera na capital!
Após a rápida
conversa que tive com o anfitrião, este afastou-se da festa para tratar de
alguns assuntos, imaginei que não voltaria tão cedo, pois parecia algo
importante. Aproveitei, então, para dar
uma volta no salão. Felizmente, havia crianças brincando, correndo, presumi que
fossem colegas de escola do aniversariante, o que fez a festa não parecer tão
formal.
Estava tudo indo bem,
conversei com algumas senhoras simpáticas que me contaram boatos de que o
Coronel renunciaria o cargo e se mudaria para a capital, após a festa. Não
acreditei naquilo, primeiramente. Quando deu exatamente 18 horas e 6 minutos da
noite, de repente todas as luzes, de lâmpadas incandescentes (aquela era uma
das poucas casas da região que possuía tal invento), se apagaram. Pessoas e
crianças gritavam assustadas, até que um minuto depois, as luzes voltaram. Os
convidados aos poucos começaram a se acalmar, exceto uma mulher que não estava
conseguindo localizar o filho pequeno.
A senhora estava
assustada, não sabia se o filho estava com medo ou se ainda encontrava-se no
salão. Provavelmente, a criança teria se escondido em algum lugar, porém a
mulher parecia cada vez mais assustada à medida que os minutos passavam. O mordomo
que guiou-me ao salão, então, apareceu e acompanho a mulher até uma sala da
residência, para fazê-la se acalmar, talvez. Após a mãe ter sido levada pelo
mordomo, a festa voltou ao normal. Obviamente, algumas pessoas sentiam-se
preocupadas com a situação. Uma criança havia se perdido, afinal. Pensei,
porém, que encontrariam em instantes o pequeno e a senhora ficaria aliviada.
Exatamente meia hora depois do primeiro
apagão, outro aconteceu. Este, porém, demorou um pouco mais. Meu senso
observador, que há pouco tempo descobri que possuía, disse-me que algo não
estava certo. Temi que, quando a luz voltasse, outra criança sumisse. Ainda não
sei como essa ideia me passou pela cabeça, algo tão estranho, como se eu
soubesse que, de fato, aquilo aconteceria, e pior. Quando as lâmpadas voltaram
a iluminar, um casal chamava a gritos pelos dois filhos, que estavam brincando
quando havia luz, antes do apagão.
Como era de se esperar,
os pais das crianças recém-desaparecidas entraram em pânico, assim como aquela
pobre coitada senhora. Mais uma vez, o antipático mordomo veio ao salão e levou
o preocupado casal à mesma sala onde levara a mãe da primeira criança que
sumiu. “O que diabos estava acontecendo?” perguntavam-se as pessoas, inclusive
eu. Presumi, porém, que o próprio mordomo havia encontrado elas e conduzira os
pais ao seu encontro, ou que tudo não passava que uma brincadeira de mau-gosto de
criança e o mordomo descobrindo os engraçadinhos de um a um. Porém, assim como
a desesperada mãe, não sabemos mais nada a respeito do casal. O mordomo subiu
ao palco onde a orquestra tocava para avisar aos convidados que estava tudo
bem, que, de fato, era justamente aquilo que eu pensara: tudo uma brincadeira
de criança, para assustar a todos que estavam lá. Pareceu a maioria se acalmar,
após tal pronunciamento; eu, por outro lado, desconfiei, pois havia, realmente,
um grande número de crianças correndo no salão, e não imagino que havia um
determinado grupo que decidiu começar a suposta brincadeira. Pelo que me
lembro, todas as crianças que vi durante a festa estavam no salão, exceto as
três que possivelmente desapareceram.
Desloquei-me para
uma janela, um pouco mais afastada da concentração, quase completamente
escondida por uma enorme cortina de seda cor de champanhe, para pensar melhor
no que teria acontecido. Eu queria muito seguir o mordomo, entrar naquela sala
estranha para me certificar se ele estava ou não falando a verdade; porém,
havia seguranças na porta de entrada da sala. Se tudo estava bem, pra que tanta
guarda? Não, não estava nada bem, e ainda não me conformo como aqueles ricos
hipócritas não conseguiam enxergar aquilo!
Enquanto refletia
sobre os fatos ocorridos, uma mulher, com uma criança de aproximadamente 4 anos
no colo, sua filha, talvez, aproximou-se de mim, para perguntar se estava tudo
bem. Era jovem demais para ser viúva, e aparentava-se preocupada com sua filha.
Contou-me que queria sair da festa, antes que outro incidente estranho acontecesse,
mas não a deixaram sair.
- Como assim?! – Perguntei indignado. – Não estão deixando
as pessoas saírem?
- Foi o que os seguranças da porta da frente me disseram. Na
verdade, fizeram-me entender isso, dizendo que seria de tamanha falta de
respeito se abandonássemos a festa antes do importante pronunciamento no
anfitrião e o corte do bolo do aniversariante. – Explicou a mulher. – Insistiram muito para nós duas ficarmos.
Quando o vi parado diante à janela, sozinho, achei que fosse a única pessoa que
eu devia contar o quanto estou preocupada. Você tem filhos?
Antes de responder,
pensei um pouco se iria, ou não, dizer a ela o quanto eu estava achando os
acontecimentos suspeitos.
- Não tenho filhos. Mas entendo perfeitamente que queira proteger
sua filha. – Parei um pouco para respirar fundo. – Senhora, eu acho que está
acontec...
Meu início de
conversa foi interrompido por outro repentino apagão. Dessa vez, as pessoas
gritaram com verdadeiro pânico.
- Segure na minha mão! – Falei para a mulher, estendendo a
mão.
Ela agarrou
fortemente minha mão direita. Ambas as mãos, tanto a minha quanto a dela,
estavam tremendo. Ouvi sua filha começar a chorar. De repente, senti sua mão
separar-se da minha e escutei um pequeno grito sendo abafado. Nada consegui
enxergar, devido à escuridão. Pela primeira vez, naquela noite, o medo tomou conta de mim.
Quando as luzes se
acenderam novamente, olhei para o lado e me espantei ao ver que, desta vez, tanto
a criança quanto a mãe haviam desaparecido. Ninguém mais teria vista aquela
mulher com a filha junto a mim, portanto, não houve estardalhaços vindos dos
demais convidados. Eu, por outro lado, estava horrorizado. Fiquei ainda mais
perturbado quando aquele mordomo infeliz subiu ao palco novamente para informar
que a brincadeirinha infantil já teria terminado. Eu tinha a absoluta certeza
de que aquilo era uma maldita mentira. Uma criança e a mãe foram simplesmente
sequestradas debaixo do meu nariz! Eu tinha que descobrir onde elas estavam...
onde todos os que desapareceram estavam!
Havia seguranças em
todos os locais que davam acesso aos cômodos do casarão. Era, portanto, impossível
subir as escadas para investigar. Felizmente, a janela na qual eu encontrava próximo
estava aberta. A ideia de fugir jamais passou pela minha cabeça, porém a de
escalar até os andares superiores dava-me um pouco de receio, mas aquilo tinha
de ser feito, pois, talvez, era minha pessoa a única com noção do que estava realmente
acontecendo. Tomei fôlego, respirei fundo, não pensei na tamanha loucura que
estava a fazer, e escalei da janela para a superior. Se, por acaso, eu caísse,
a queda não seria fatal, talvez me deixasse ferido, talvez com algum osso
fraturado.
Ao subir, abri
cuidadosamente a janela pelo lado de fora e entrei. O segundo andar parecia-me
bastante calmo e pouco iluminado. O som da banda a tocar ecoava por toca a
casa, assim eu mal conseguia escutar um barulho por perto, se houvesse algum. Quando a música
parou por um instante, escutei passos e imediatamente me escondi. Era o mordomo
de nariz empinado que batera nos aposentos do dono da propriedade, dizendo:
- Estão todos no porão, senhor. Devo dizer-lhes para esperar
ou podemos começar?
- Não. – Respondeu o Coronel de Açougueiro. – Descerei agora
mesmo.
Do que eles estavam
falando? Seja lá o que fosse, talvez a resposta estivesse no porão. Esperei o Coronel
descer, para aventurar-me novamente nas janelas do casarão. A descida pareceu
mais fácil. Quando meus pés se encontraram com o solo do quintal da
propriedade, corri cautelosamente até encontrar a entrada do porão. Felizmente,
não havia muitos seguranças nos arredores, apenas dois no portão principal. Quando
finalmente achei a pequena porta que dava acesso ao local tão procurado por
mim, abri uma pequena brecha, para poder espiar o que estava se passando.
Lá estava o Coronel,
gargalhando feito um louco, juntamente com alguns de seus empregados, exceto o
mordomo. Estavam todos em volta de um enorme caldeirão borbulhando; pelo
cheiro, o material fervendo parecia cera. Imediatamente, me veio na cabeça um
terrível pensamento que, infelizmente, pude comprová-lo ao olhar atentamente
todo o porão: lá estavam as crianças que haviam desaparecido, juntamente com
seus pais; todos estavam nus, desacordados, de olhos bem abertos, porém não
pareciam mortas, mas anestesiadas. Foi então que percebi o que realmente eram aquelas
estátuas de cera, no corredor de acesso ao salão de festas: havia lá exatamente
3 bonecos de meninos e 2 de meninas, o mesmo número de crianças desaparecidas,
há um tempo. Fiquei extremamente em choque quando os empregados do coronel,
após realizarem um processo de conservação do corpo das vítimas, despejaram as crianças
no caldeirão e em seguida seus pais.
- De fato, será uma
bela coleção, senhor! – Exclamou um dos empregados.
O Coronel abriu uma
garrafa de vinho que trouxera consigo, serviu aos empregados e após tomar um
grande gole na garrafa, disse:
- Senhores, eu declaro oficialmente aberto nosso ramo de
fabricação de bonecos de cera! - Bebeu mais um gole. – Assim que eu terminar meu discurso de
despedida e encerar a festa de meu filho, todos nós partiremos daqui.
Eu não podia, nem
queria escutar mais nada. Fechei a pequena porta do porão, sem acreditar no que
vi. Meu corpo tremia em todos os lugares, quase não consegui me pôr de pé,
porém, era fundamental sair dali, pois o Coronel logo sairia também. Se ele me
soubesse que eu estava lá espiando... talvez eu até virasse um boneco também. Eu realmente não sabia o que fazer, se chamaria a polícia ou
outras autoridades, apesar de o psicótico anfitrião ser a única autoridade do
município de Açougueiro. Enquanto recuperava-me do choque, tentando levantar do
chão, senti o cano de uma garrucha encostando na minha cabeça e escutei a voz
fria e assustadora do mordomo dizendo:
- Se der uma palavra,
perderá os miolos!
Obrigando-me a andar
até um lugar certo para terminar comigo, o mordomo não esperou que minha
agilidade fosse tão grande a ponto de livrar-me da arma, desviando-me
dela e jogando-a para longe quando quebrei o braço daquele imundo e covarde.
Felizmente, o mordomo era um homem velho e lento. Este, porém, possuía uma faca
e, com a mão esquerda, deferiu-me um golpe que quase acertou minha barriga. Eu
não tinha outra escolha além de segurar fortemente a mão do sujeito, fazendo-o apontar a faca para si e, com isso, enterrar o objeto pontudo no próprio peito.
Sim, eu acabara de matar um homem, menos de uma hora de ter visto a maior
brutalidade que alguém pode ver. Mais uma vez sem saber o que fazer, fugi,
deixando o corpo do mordomo traiçoeiro no chão e aquelas pobres pessoas queimadas
com cera quente até se tornarem bonecos. Pulei o muro da propriedade (ainda não
sei se fui ou não visto pelos seguranças) e corri. Quanto mais eu corria, a
dor, a fúria, o arrependimento e todos os terríveis sentimentos que um
indivíduo pode ter aumentavam em mim.
Quando finalmente cheguei a minhas terras, tranquei-me dentro de casa. Decidi que seria mais prudente fugir para alguma cidade pequena distante, pois o coronel saberia que fora eu o responsável pela morte de seu mordomo, além de saber da sua doentia obsessão por bonecos humanos. Então, preparei uma mala com roupas, objetos de valor e todo o dinheiro que estava comigo, e tive a cruel, porém fundamental, decisão de incendiar a antiga casa de minha família, para todos do município pensarem que eu estava morto.
Quando finalmente cheguei a minhas terras, tranquei-me dentro de casa. Decidi que seria mais prudente fugir para alguma cidade pequena distante, pois o coronel saberia que fora eu o responsável pela morte de seu mordomo, além de saber da sua doentia obsessão por bonecos humanos. Então, preparei uma mala com roupas, objetos de valor e todo o dinheiro que estava comigo, e tive a cruel, porém fundamental, decisão de incendiar a antiga casa de minha família, para todos do município pensarem que eu estava morto.
Foi justamente o que
fiz: taquei fogo na minha própria residência. A partir daquele momento, passei
tornei-me a vergonha da família Souza, mas aquilo tinha de ser feito e não havia
mais nada em minha mente além de incendiar o casarão para forjar minha morte.
Após tal feito, peguei meu melhor e veloz cavalo e parti daquele município que
jamais retornaria outra vez.
Comecei uma nova
vida, numa cidade longe no interior. Arranjei um simples emprego para esconder
minha identidade e usei boa parte do dinheiro que possuía para comprar uma nova
casa e tentar constituir uma família. Em um ano, após a desgraça que por hora
havia me esquecido, tudo estava muito bem, até uma manchete de jornal chamar
minha atenção: “Ex-Coronel inaugura museu de cera na capital”. Aquilo me fez
lembrar, não só da brutalidade que assisti, como também do fato de eu ter
praticamente dado a ideia de abrir um museu para aquele maldito psicopata e,
como sempre, eu não podia fazer nada. Que Deus tenha pena de minha alma.
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