CONSERVA
Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição.
PARTE II
As
pilhas do relógio da parede precisavam ser trocadas. Desde a meia-noite em
ponto daquela terça-feira, o objeto estivera parado. Não se preocupando muito
com tal fato, Ernesto aprontava o estabelecimento para a chegada dos clientes.
Esperava ver alguns amigos naquela noite fria, para servir altas rodadas de
cervejas quentes.
Mais tarde, um de seus velhos conhecidos
chegou à taberna. Um homem de cabelo cacheado, olhos escondidos por um óculos
“fundo de garrafa”, que trajava um enorme sobretudo cinzento de frio e um
chapéu, deixando os itens no cabide próximo a porta de entrada.
- Timothy, meu
velho! – Cumprimentou Ernesto, ao ver seu bom freguês na perto a porta. – O que
o traz aqui?
- Em primeiro lugar,
Ernie, minhas pernas. – Brincou o homem. - Em segundo, uma caneca da sua melhor
cerveja. Em terceiro, mas não menos importante, um pouco de companheirismo.
Onde estão os outros? Peter, Brendan, Iago...?
Sentindo um leve ódio ao escutar o nome do
homem que matara na noite anterior, Ernesto forçou um sorriso e respondeu:
- Peter já deve está
chegando, talvez. Iago... eu não o vejo há um bom tempo?
- Nem tanto tempo
assim, eu acho. Não lembra do caos que estava aqui no último sábado? Tudo obra
do...
O diálogo de Timothy foi interrompido quando a
porta da taberna abriu, revelando outro antigo freguês.
- Adrian! Venha se
juntar a nós! – Disse imediatamente Ernesto.
Adrian, homem baixinho e franzino, decidiu não
tirar a cartola que sempre usava. Sentou-se junto a Timothy em frente ao bar e
começou a beber e papear com os amigos.
Após um tempo, Timothy consultara seu relógio
de pulso que marcava nove horas da noite. Vendo que estava tarde, decidiu
voltar para casa, arrastando Adrian consigo.
- Amanhã é dia de
trabalho, companheiro. Temos que estar sóbrios. – Repetia Timothy enquanto
arrastava o amigo baixinho para fora da taberna.
Após se despedir dos fregueses amigos, Ernesto
sentiu-se um pouco isolado. Gostava quando a freguesia no seu bar era amigável
e, principalmente, de conversar as bobagens da vida com os verdadeiros amigos.
Antes de adormecer naquela noite, o barman releu a carta de sua amada prima,
criando grandes expectativas para a sua chegada ao vilarejo. Sua última leitura
da noite foi mais um conto do seu escritor favorito, Edgar Allan Poe. Após ler
“Os Dentes de Berenice”, pegou no sono.
Na manhã de quarta-feira, Ernesto foi
despertado com o toque do telefone que ficava acima da sua mesa de cabeceira.
Ainda sonolento e sem saber a hora, o barman atendeu, emitindo uma voz forçada
de quem estaria morrendo de sono:
- Alô? – Perguntou
ao outro lado da linha, dando um enorme bocejo, em seguida.
- E-Ernesto? – A voz
gaguejava.
Preocupado, o barman
logo perguntou:
- Quem está falando?
- Ernesto... sou
eu... Glória.
Glória era esposa de
Timothy, que aceitava perfeitamente as idas do marido à taberna. Até pelo fato
dela, professora da escola primária, também visitar o estabelecimento nos
finais de semana, para esquecer as crianças chatas da escolinha por um ou dois
dias.
- Aconteceu alguma
coisa, Glória? Sua voz...
- Timothy morreu! –
Disse diretamente a mulher, seguido de soluços e prantos.
Ernesto ficou sem saber o que dizer. Seu amigo
estava com ele há menos de 8 horas. Como Timothy, cheio de vida e saúde, teria
morrido?
- O que você está
dizendo? – Perguntou o barman, controlando-se para não entrar em desespero.
Glória deu uma pausa
nos soluços e tornou a falar.
- Ele... ele
simplesmente... começou a vomitar. Vomitar sangue. No vômito dele... Meu
Deus... havia algo apodrecido.
- O quê? Apodrecido?
- Aquele cheiro...
aquela consistência de sangue prestes a coagular... talvez isso não seja o
pior.
Mais um baque atingira o coração do barman.
Como poderia haver outra coisa pior que a morte de um dos melhores amigos? Além
de ter sido uma morte deveras tão estranha?
- O que pode ser
pior que isso? – Perguntou Ernesto, receoso.
- Adrian também
morreu de madrugada. – Respondeu Glória, com a voz ainda trêmula e chorosa.
Ernesto deixara cair o telefone na mesa de
cabeceira. O barman afundou-se na cama, esperando acordar de um terrível
pesadelo da qual jamais despertaria.
- Ernesto? Ernesto?
Ainda está aí? – Gritava Glória, do outro lado da linha.
Ao recuperar um pouco os sentidos, o barman
voltou ao telefone e perguntou:
- Não me diga que
ele também morreu do mesmo jeito que Timothy?
Glória se calou por
um momento. Não sabia o que responder, para não parecer algo tolo ou
incompreensível.
- De acordo com
Elisabeth (esposa de Adrian), sim. E para piorar, exatamente à meia-noite.
- Timothy também?
Meia-noite?
- Sim.
- Os corpos já estão
com Dicker?
- Ele já examinou os
dois, a madrugada inteira. Disse que precisa manda-los para a cidade mais
próxima, onde necrotérios mais estruturados farão seus exames para constatar a
causa da morte.
- Estou indo para
Dicker.
David Dicker era o
dentista, enfermeiro, doutor, cardiologista, parteiro e médico legista do
vilarejo. Frequentava também o bar de Ernesto, porém costumava passar mais
tempo lá na época em que pertencia ao pai do barman. Era um senhor de idade,
talvez o único idoso que frequentava a espelunca, culto e inteligente, que
sempre estava disposto a ajudar.
Chegando ao pequeno necrotério do vilarejo,
Ernesto, preocupado, foi logo perguntar a Dicker se havia sido detectado veneno
nos corpos dos amigos.
- Não sei dizer
exatamente, Ernesto. – Respondeu o doutor. – Não consegui identificar um tipo
de substância química, além do álcool ingerido, que não foi uma quantidade
capaz de causar morte, até pelo fato de já ter visto situações piores graças à
bebida, nem veneno.
Por isso também que decidir encaminhar os corpos para a
cidade.
- Alguma previsão de
quando sairá um laudo com a causa das mortes? – Perguntou Ernesto, apreensivo.
O barman tinha medo de ser o culpado pelas mortes dos amigos. E se uma gota
daquele mortal veneno que tivera dado para Iago tivesse caído acidentalmente
nos copos do bar?
- Olha, Ernie... eu
não sei dizer. Mas, fique calmo. Sei que sua taberna jamais possuiu alguma
bactéria ou coisa do tipo.
Se o legista soubesse o que o barman mantinha
escondido no porão do seu estabelecimento... Ernesto até perguntou se seria
necessário alguém fazer uma vistoria na taberna para detectar alguma substância
estranha ou bactéria, pois sua preocupação era maior que sua língua. Mas Dicker
respondeu que não seria necessário por enquanto.
Quando estava saindo do necrotério, Ernesto se
deparou com Brendan, outro velho amigo, que entraria no local pequeno e gelado
para reconhecer os corpos dos companheiros (não acreditara quando Glória lhe dera
a notícia). Ao ver Ernesto, o homem, magro e de semblante doente, que trajava
um cachecol que parecia lhe apertar o pescoço, com os olhos cheios d’água e o
rosto inchado de tanto chorar, abraçou amigavelmente o barman. Ernesto
retribuiu o abraço cheio de sentimento e em seguida falou o que os dois
precisavam realmente ouvir:
- Precisamos de um
trago.
- Aos nossos
companheiros – completou Brendan – Rapaz... o que foi que aconteceu? Por que
eles fizeram isso com a gente?
- Eu não sei, meu
velho... somos só eu, você e Peter, agora. Por falar nisso, onde ele está? Já o
avisaram da tragédia?
Brendan deu um longo suspiro e tornou a falar:
- Sim. Ele está em
casa. Não quer falar com ninguém. Você sabe que ele e o Timothy cresceram
juntos, foram praticamente criados pela mesma mãe, então... E é verdade...
somos só nós 3, agora. Ah, e o Iago também. Não sei se ele já sabe o que
aconteceu. Pra falar a verdade, não o vejo há um bom tempo.
Ao escutar o nome daquele ser humano
repugnante da qual havia se livrado para sempre, Ernesto sentiu uma forte
energia negativa dentro de si. Como se alguma coisa pior do que a morte de dois
dos seus melhores amigos estava prestes a acontecer. O barman, simplesmente,
preferiu ignorar o fato de o cigano ainda estar “enterrado” no porão de sua
taberna e deu continuidade a conversa:
- Pois é... eu
também não sei onde ele está. Deve ter sido convocado para outra feira de
ocultismo sem nos avisar, como sempre. – Mentiu.
Enquanto caminhavam até a casa de Brendan,
onde iriam almoçar, os dois homens relembravam as situações engraçadas em que o
grupo de amigos haviam se metido ao longo dos anos, como uma vez em que, todos
eles bêbados, inventaram de sair na floresta para procurar um Yeti e acabaram
se esbarrando em um enorme urso pardo que atualmente enfeitava o chão da biblioteca
da casa de Peter. Terminado o almoço, Ernesto e Brendan combinaram uma hora
para começar a bebedeira, a fim de amenizar a dor e o sentimento de vazio.
Às 6 horas em ponto da noite, Brendan chega ao
bar. Ernesto, como sabia que Peter não iria comparecer naquela noite, fechou as
portas da taberna e a manteve aberta apenas para si e o velho amigo, que já
estava se servindo de uma grande dose de conhaque envelhecido.
Menos de duas horas depois, os homens se
encontravam em estado altamente deplorável. Não conseguindo controlar a língua,
tampouco as emoções, Ernesto começou a contar coisas que não devia para
Brendan, que bem atento escutava passo a passo das confissões do barman.
- Sim! Eu acabei com
a raça daquele maldito e imprestável cigano com um veneno do próprio povo dele!
– Repetia Ernesto, gargalhando até ficar rouco.
Brendan não tinha noção da barbárie que estava
ouvindo, mas, mesmo assim, decidiu atiçar Ernesto a lhe mostrar o corpo de
Iago.
- Eu vou mostrar! –
Exclamou Ernesto, ao ser perguntado sobre o corpo. – Vamos lá!
Levantando-se de uma das mesas e cambaleando
para tentar se manter de pé, o barman tirou de um dos bolsos a chave que abria
o acesso ao porão e seguiu com o amigo, também sem forças nas pernas, para
baixo. Estava escuro e húmido, situações incomuns no lugar mais bem cuidado do
estabelecimento. Quando o barman retirou a tampa de pedra que tapava o pequeno
poço de cerâmica, Brendan pôde ver o corpo de Iago, totalmente pálido e encharcado,
boiando junto às cebolas. Ao se deparar com aquilo, seus sentidos de repente
retomaram e um choque tomou conta de sua razão.
- Como... Como você
pôde fazer isso?? – Gritou para Ernesto, jogando o barman contra uma parede e levantando-o
pela gola do casaco. – Você perdeu o juízo? Tem ideia do que fez?
- Eu estraguei o
sabor das cebolas? – Perguntou Ernesto em tom de brincadeira, apesar de estar
completamente embriagado e tonto.
A resposta para a
sua pergunta foi um belo golpe dos punhos magros de Brendan na cabeça, o que
fez o barman apagar. Quando recuperou os sentidos, estava sentado em uma das
poltronas que dava para a lareira da taberna.
- Você está bem? –
Perguntou Brendan, ao ver que Ernesto recuperara a razão.
O homem levou a mão à cabeça e percebeu um
galo na altura da testa.
- Eu acho que sim.
Já estive pior.
- Então? O que você
vai fazer?
Ernesto sabia que
havia falado o que não devia, mas, mesmo assim, tentou disfarçar:
- Do que está
falando?
- Não banque o
espertinho comigo, Ernie. Eu sei o que você fez. O corpo de Iago ainda está no
poço. Nós precisamos arranjar um meio de nos livrar dele quanto antes.
Os dois homens estavam preocupados. Não sabiam
o que fazer a respeito daquele corpo. Ernesto contara sua ideia a Brendan, de
enterrar Iago no domingo, enquanto não haveria ninguém nas ruas. O amigo questionou:
- E qual é o problema
de fazer isso de madrugada?
- E se alguém me vir?
– Perguntou o barman, extremamente preocupado.
- Você tem mais
chances fazendo isso agora, comigo, do que sozinho. Eu sei que não devia, mas
vou ajudá-lo.
Ernesto sentiu, nesse momento, um grande afeto
por Brendan. Não se fazia mais amizades como a dele.
Após elaborar um meticuloso plano para dar fim
ao corpo de Iago, os dois amigos esperaram o relógio da catedral do vilarejo
dar a primeira badalada do novo dia para botar o plano em ação.
- Preciso concertar
meus relógios. – Disse Ernesto. – Desde a meia-noite de hoje, todos estão
parados.
- Todos eles pararam
ao mesmo tempo?
- Sim, a meia-noite.
Por que essa cara?
A expressão de Brendan mais revelava um homem
doente apavorada com determinada situação do que um adulto pronto para exercer
um trabalho de extrema responsabilidade.
Assim que o relógio do vilarejo avisou a todos
que a meia-noite chegara, os homens se levantaram da mesa e andaram em direção
a escada que levava ao porão.
Brendan, porém, parou ainda no primeiro
degrau, começou a sentir fortes dores dentro do corpo, mas não sabia dizer
exatamente de onde vinham. De repente, o homem, que não mais aguentava da dor
que se assemelhava a mais de 100 espadas japonesas perfurando seu corpo, caiu
escada a baixo. Assustado, Ernesto correu em direção ao seu amigo. Ao tentar
levantar o companheiro, este simplesmente começou a gritar e se debater no
chão. Ernesto não sabia o que fazer. A pele de Brendan estava começando a ficar
pálida, fria e, inexplicavelmente, húmida; por fim, antes do último suspiro
agonizante que ainda lhe restava, o homem vomitou litros de sangue que já
estavam em estado de coagulação por todos os lados. O cheiro de putrefação
exalou pela taberna.
Ernesto, sem saber o que fazer, ficou sem
reação. Estava ainda ajoelhado, ao lado do corpo sem vida de Brendan. Suas
roupas sujas do vômito de sangue, suas mãos trêmulas e a expressão de horror
estampada em seu rosto, porém, não era nada comparado ao que estaria por vir.
(Continua...)