domingo, 23 de outubro de 2016

Conto: Inspiração dos Infernos

A história de hoje trata-se de um triste fato que aconteceu comigo, há muitos anos. Naquela época, eu ainda era um jovem músico que tentava obter sucesso compondo melodias românticas de piano. Porém, minha criatividade se encontrava desprovida de inspiração e isso já fazia um perturbador longo tempo.

 Eu realmente não sabia mais o que fazer. Nada mais podia me inspirar, nem mesmo uma tarde de leitura deitado sob a grama do jardim de minha propriedade, tampouco conversas e trocas de ideias com meus professores de música, muito menos observar o pôr-do-sol ao lado de uma pessoa amada. Nada mais me inspirava e eu precisava apresentar uma música nova para os clérigos no dia seguinte.

- Mestre Antônio, não se esqueça da nossa música de amanhã! Estou ansioso para ouvir e tenho certeza que o Bispo também. – Me cobrou um dos membros da Igreja, quando me viu caminhando pela cidade.

  Quando voltei para casa, depois de mais um dia de trabalho mal sucedido, desabei no choro de tamanho desespero. Não queria falar com ninguém e também não aceitei ajuda de meus familiares. Eu precisava pensar em uma bendita música nova e meu cérebro preguiçoso não estava colaborando para isso.

 Tranquei-me no quarto, sentei-me em frente ao único piano que me pertencia daquela casa, de tamanho adequado para ocupar o lugar de uma mesa de escrivaninha, e comecei a tocar. Toquei e toquei e toquei e toquei até meus dedos começarem a cansar; Jurei tê-los visto mancharem as teclas de marfim de sangue, mas aquilo parecia minha mente cansada me pregando peças. Quando bati fortemente os dedos nas teclas, sinalizando minha desistência, pensei a pior coisa que poderia pensar em toda a minha vida: “eu faria qualquer coisa para compor uma melodia nova!”. Isso se aplica a possíveis acordos com entidades paranormais supremas, tanto boas quanto ruins. 

 Quando parei de tocar, ou, pelo menos, tentar, cochilei diante do piano. A noite já havia caído, mais silenciosa que um túmulo, mais gelada que um cadáver, mais desinteressante ou desinteressada que minha criatividade. Eu havia deixado a janela do quarto aberta, mas estava com muita de preguiça de me levantar para fechar.

 Fui despertado, então, por uma peculiaridade sonora que, desde o primeiro momento que eu ouvi, me encantou. Aquele som, que eu não sabia de onde estava vindo, estava simplesmente pairando sob meu quarto, como uma um incenso que transmite tranquilidade ao ambiente. No caso daquela belíssima melodia que ecoava em minhas paredes, aquilo me fazia extremamente bem. Não era uma música alta, nem mesmo baixa, mas um som em perfeita harmonia com o lugar e principalmente comigo. Aquela música, de melodia que eu acabara de decifrar como romântica, que começava com o acorde de lá menor, literalmente me acordou, fazendo-me compor imediatamente a música que eu estava devendo para o bispo.

 Depois de finalizada no papel e no lápis, fui testar o resultado no piano. Estalei os dedos, endireitei minha postura e comecei a tocar. O resultado nunca me deixou tão satisfeito e emocionado. Eu finalmente criara algo de respeito! O som não mais pairava no ar, mas na minha cabeça e consequentemente no meu piano.

 Eu estava tão extasiado de felicidade que mal notei um morcego morto que estava caído na minha janela. Pobre animal, mas aquele não era o momento de me preocupar com mamíferos mortos. Eu não conseguia dormir naquela noite, de tão feliz e ansioso para o dia seguinte. Passei a noite tocando a música para mim. Felizmente, as paredes do meu quarto eram revestidas com uma madeira poderosa que impossibilitava o som passar para os outros cômodos da casa. Assim, ninguém mais além de mim poderia escutar a música. Isso é ótimo, pois eu odiaria que alguém escutasse a música antes dos membros do Clero. Queria surpreender a todos! Mal sabia eu o quão importante foi não ter deixado ninguém da minha família escutar a música.

 Quando o dia finalmente raiou, vi a luz do Sol iluminando meu quarto e revelar para mim uma estranha visão: vários insetos mortos no meu chão, como formigas, mariposas, e mosquitos. Não lembro de ter matado nenhum inseto durante a madrugada, nem mesmo da presença desses bichos no meu quarto. Decidi ignorar tal acontecimento e descer para tomar café da manhã e finalmente sair.

 Saindo de casa com os papéis da partitura da música em mãos, rumei à catedral, onde o Bispo e os demais clérigos me esperavam. Chegando lá, cumprimentei a todos e levaram-me para um salão espaçoso, repleto de janelas com vitrais franceses, poltronas para o público sentar e um palco para a orquestra se apresentar, com uma gigantesca cruz de madeira presa à parede que parecia “abençoar” os músicos e a plateia. Nessa ocasião, eu seria o único músico de minha “orquestra”. Lá estava um piano todo revestido de mármore branco, um dos mais bonitos que já vi em toda minha vida. Sentei-me diante do instrumento musical de minha especialidade, testei sua afinidade, coloquei a partitura no meu campo de visão e esperei o Bispo sentar em sua poltrona especial no meio do salão para eu poder começar a expor minha obra-prima.

 Quando finalmente chegou a hora, senti-me confiante demais e decidi fechar os olhos para executar minha música. Esteva fazendo tudo conforme o planejado, da melhor maneira possível. Não mais podia escutar nada no mundo lá fora, a não ser minha melodia que ecoava naquele salão. As janelas estavam fechadas, o que permitia uma acústica ainda melhor.

 Ao finalizar minha obra de arte, abri os olhos esperando me deparar com os olhares de encanto do meu público religioso. Porém, o que vi vai além dos limites do horror que um ser humano possa ver. O bispo e os demais clérigos estavam, de fato, com os olhos bem abertos; porém, suas cabeças estavam caídas para trás, seus corpos imóveis, suas expressões amedrontadas, como se algo tivesse assustado a todos de maneira inesperada, o que de fato a morte fez.

 Eu estava em choque. Não conseguia me levantar da cadeira, nem mesmo pensar no que poderia ter causado aquele genocídio, mesmo sabendo a resposta imediatamente, ainda mais quando olhei a enorme cruz de madeira pregada a parece e perceber que o objeto estava completamente invertido. Naquele momento, meu coração pulou, minha mente pesou e não houve mais nada que eu pudesse fazer além de levar minhas mãos à cabeça e gritar. Agora tudo fazia sentido... o morcego, os insetos, o fato da música surgir misteriosamente na minha cabeça... tudo isso havia sido obra do diabo!

 Peguei aquela partitura amaldiçoada pelo diabo e decidi rasgar. Quando puxei os papéis com violência, fazendo as folhas ficarem amassadas, senti uma dor insuportável em meu corpo. A situação só fazia piorar cada vez mais. Para sair da sala, tive que passar pelos cadáveres do clero de minha cidade. Não mais havia representantes da Igreja naquele local. Eu havia condenado a todos com aquela maldita música.

 Ao tentar queimar aqueles malditos papéis da partitura na lareira do salão, senti novamente aquela dor agonizante e um terrível calor que eu jamais havia sentido. Só depois da segunda tentativa de destruir de vez aquela música me dei conta de que eu era aquilo, ou aquilo era eu. Minha alma estava presa naquele pedaço amaldiçoado de arte. Depois daquela tragédia, nunca mais me dediquei à música, até pelo fato de eu ter sido condenado e preso por ser principal suspeito da morte de todos aqueles homens de fé. Os papéis amaldiçoados permanecem no meu quarto, nunca tive chance de me livrar deles e de mim.


 No meu solitário e imundo cárcere, escrevo para vocês, com muita amargura e arrependimento, a vez em que eu me inspirei no próprio diabo. Só espero que ninguém leia essa história em voz alta, pois não sei se todas as minhas escrituras quando escutadas ocasionam mortes medonhas. Leiam em silêncio.

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