Roger Carter era
apenas um viajante quando deu de cara com o perigo. Apesar de entender as
diversas lendas locais, tendo estudado profundamente sobre os demônios e outras
criaturas medonhas de sua região, o homem de meia idade, humilde e excepcionalmente
esperto – além da inteligência lógica, a esperteza de jogador era uma das,
senão a maior, vantagens mais importantes do viajante britânico – , caminhava
lentamente por uma tortuosa estrada no calar da noite. A escuridão era rompida
apenas pela luz do luar e o brilho das estrelas, que embelezavam o céu azul
escuro noturno, fazendo com que o viajante olhasse mais para cima do que para
frente.
Como a maioria das
estradas desertas e mal iluminadas, aquela da qual Roger peregrinava, de acordo
com alguns moradores antigos da região, pertencia a um espírito demoníaco que
não tolerava ser desafiado, muito menos enganado. Se algo acontecia naquela
estrada a mando do espírito, era para realmente acontecer. Porém, se alguém
tivesse a audácia de desfazer aquilo que deveria pela entidade ser feito,
sofreria com as consequências.
Enquanto caminhava,
ainda desatento com o que estava a sua frente, Roger percebeu que o silêncio
noturno foi rompido pelo grunhido desesperado de um melro negro que estava
caído ao chão, tentando recuperar suas asas quebradas para tentar voar.
Comovido com aquela situação, Roger se deu conta de que não podia deixar o
animal morrer daquele jeito. Por sorte, a ave estava caída justamente ao pé da
árvore onde localizava seu ninho. Bastou o viajante inglês interromper sua
viagem para ajudar o pássaro negro, que só estava esperando um momento como
aquele para ficar livre, ou 50%, já que ainda não tinha forças para levantar
voo. Se o pequeno animal tivesse sido deixado lá, correria o risco de cair de
uma ribanceira ao lado de sua árvore, se tentasse levantar voo.
A partir do momento
em que Roger colocou o pássaro em seu ninho, uma névoa surgiu ao redor do
viajante, que sentiu um frio imensurável, além de uma estranha sensação de algo
estava ocasionando um certo peso no ambiente. Da névoa gelada esbranquiçada no
meio da escuridão, surgiu então uma figura humanoide cinzenta, com o rosto
desprovido de face, a não ser pelos gigantes olhos extremamente negros, dois
chifres pontudos na testa, e membros (braços e pernas) longos. Roger não tinha
dúvidas de que estava de cara com o demônio que tomava conta daquela estrada
deserta.
Demonstrando surpresa
em vez de medo e respeito no lugar de desespero, o viajante decidiu
cumprimentar a besta que o encarava com aqueles olhos que mais pareciam duas
bolas de bilhar pretas.
- Boa noite. Em que posso ajudar?
Surpreso com tamanha
ousadia humana, o demônio respondeu:
- O senhor com certeza deve ter uma noção do que acabou de
fazer, não é mesmo, Roger Wilson Carter? – A entidade apontava para o ninho,
onde se encontrava o melro.
- Acho que não estou entendendo, senhor. – Roger, no fundo,
estava amedrontado, mas ainda mais curioso com o que um demônio da estrada
poderia fazer com ele.
Se aproximando do viajante,
de modo que seu rosto cinzento pontiagudo sem face estivesse bem perto do de
Roger, o demônio explicou:
- Aquele pássaro foi deixado no chão para morrer. A noite
não é um horário adequado para voar.
- Para mim, é uma belíssima noite para voar, meu caro. –
Respondeu o viajante, olhando para as estrelas com um sorriso de sarcasmo no
rosto.
Impaciente, o demônio
levantou a voz para falar o quão estava surpreso com a ousadia do mero mortal:
- Você quebrou uma regra imposta por mim, o guardião dessa
estrada. Ninguém rompe meus ofícios. Se aquela ave estava condenada para a
morte, ela devia morrer. Mas, você, um mero viajante, humano, mortal, rompeu
meu próprio trabalho. Estou surpreso com isso, porém, não devo deixar que você
conclua essa viagem com vida.
Roger, pensativo,
respondeu:
- Eu não disse para onde estou indo. Posso chegar ao meu
destino se der mais um passo. Ou, talvez eu já tenha concluído minha viagem.
O demônio estava sem
entender.
- Se eu não disser ao senhor qual o meu destino, nem
confirmar se já me encontro neste, não há como me matar, não é mesmo?
Se sentindo
profundamente humilhado com o sarcasmo e a arrogância humana, o demônio pegou
seu provocador pelo pescoço, erguendo-o e jogando-o contra a árvore do melro,
praticamente na beirada da ribanceira. Assustado com tamanha violência, mas não
hesitando em provocar o espírito maligno, Roger comentou:
- Se me matar aqui e agora, também estará quebrando uma
palavra por você imposta.
Sem saber o que
responder o demônio decidiu mudar sua palavra, já que todo supremo poder cabia
a ele.
- Você está em minha estrada, sob os meus domínios. Quem faz
as ordens aqui sou eu e disso você sabe muito bem. Eu levarei sua alma comigo,
deixando apenas seu corpo fétido e imundo aqui. No inferno onde eu moro, você
sofrerá as consequências e aprenderá que toda alma insolente paga caro por seus
atos.
- Você pode me matar, mesmo que esse seja um trabalho para a
Morte; mas decidir o que fará com minha alma não cabe a você, e sim aos anjos
ou demônios de verdade.
Enfurecido, o
espírito demoníaco respondeu:
- Eu decido o que faço com gentalhas que cruzam meu caminho
e me insultam em minha própria casa!
Sereno como a noite
até naquele momento de extrema tensão e mais confiante como nunca estivera, Roger arriscou perguntar o que seria sua
possível salvação:
- Posso, pelo menos, ter um último pedido, senhor?
- Se for possível, sim. – Concordou o demônio, se preparando
para tirar a vida do viajante.
- Posso tomar um último gole? – Perguntou Roger, retirando
do bolso de seu casaco uma pequena garrafa de vidro contendo um líquido
transparente.
Em nenhum momento,
por sorte de Roger, o demônio desconfiou o que poderia ser aquela bebida. Decidiu simplesmente deixar o viajante beber seu último gole e acabar de uma
vez como tudo aquilo.
Concordando em deixar o viajante tomar seu último trago,
o demônio respondeu:
- Não negarei seu último pedido. Pode beber. – Disse fazendo
um gesto com a mão, como que permitindo que o viajante realizasse sua última
bebedeira.
Roger, porém, não
tirou da mochila uma garrafinha de whiskey, tampouco de rum ou qualquer outra
bebida alcoólica, mas um frasco contendo um líquido transparente que mais
parecia água. Não conseguindo tirar a tampa do frasco, o viajante torceu várias
vezes aquela fechadura, até o demônio perceber sua dificuldade e, impaciente
com aquela demora, se oferecer para abrir aquilo.
Quando a tampa foi
finalmente removida, Roger, rápido como um raio, deu uma tapa no frasco que
estava nas mãos do espírito demoníaco da estrada, fazendo a Água Benta que
estava lá dentro derramar sobre o peito daquela criatura, queimando-o.
Agonizando de dor, o demônio caiu ao chão enquanto uma fumaça branca exalava de
seu corpo cinzento. Roger, por sua vez, decidiu rolar ribanceira a baixo para
escapar do assassino de corpos e ladrão de almas. O viajante simplesmente se
jogou para baixo, rolando em meio ao gramado e às pedras e, quando finalmente
chegou ao solo, estava à beira da morte devido aos ferimentos da queda.
Feliz por ter se
livrado do demônio, Roger, porém, sabia que estava morrendo. Tinha total
certeza de que aquela situação, com as duas pernas quebradas, um galho
enterrado em sua barriga, vários cortes e ferimentos em todos os lugares do
corpo e a cabeça parcialmente esmagada por uma pedra, não o deixaria vivo por
muito tempo. Ao finalmente deixar o mundo material, o viajante se viu numa
atormentadora penumbra.
O local da qual sua
alma se encontrava estava realmente escuro e amedrontador. Roger sabia que algo
desagradável estava por mim. Foi quando, de repente, uma figura negra, como o
ambiente da qual se encontrava, encapuzada e alta surgiu caminhando em sua
direção. Roger tinha absoluta convicção de que estava se deparando com a morte,
só não entendeu o porquê da famigerada entidade aparecer após ele já ter
morrido.
Quando chegou bem
próximo do falecido viajante, a morte começou a falar:
- Você é uma pessoa esperta, Roger Wilson Carter. Ou, pelo
menos, foi.
“Pronto!”, pensou Roger. “Mais uma entidade sobrenatural para
desafiar”.
A Morte, porém, continuou:
- Não, você não precisa me desafiar. – Respondeu a criatura,
que podia ler os pensamentos dos mortos. – Você, neste momento, devia estar no
julgamento dos anjos e demônios superiores, para determinar onde seria sua
eternidade. No paraíso ou no inferno. Porém, decidi trazê-lo secretamente ao
meu limbo particular.
Roger não questionou,
apenas ouviu o que a Morte tinha a dizer. Estava curioso demais para fazer
perguntas, dizendo apenas:
- Diga-me o motivo de eu estar aqui.
- Quero que você, o único ser vivo que conseguiu desafiar e
vencer um espírito demoníaco, trabalhe para mim. Na sua argumentação com a
criatura da estrada, você mesmo que disse que o serviço de matar cabia a mim e,
com isso, meu nome foi honrado. Tu também fizeste com que o demônio não levasse
a alma do pássaro que estava caído. Portanto, Wilson Carter, preciso de alguém,
espeto o suficiente como você, para evitar que aquele demônio continue
realizando o serviço que cabe a mim. Eu tenho o controle sobre a vida e a
morte, não qualquer entidade demoníaca que assombra uma estrada.
- O que ganharei com isso? Poderei voltar ao mundo dos vivos
e viver entre eles?
- Infelizmente, não posso permitir que faças isso. Você
retornará ao mundo dos vivos, mas na forma de espírito, um espírito protetor
que terá total poder de impedir o encontro e a morte prematura e não planejada
ou executada por mim dos indivíduos com o demônio da estrada.
- Ainda não me disse o que irei ganhar... – Por um momento,
Roger achou que não devia estar pressionando a Morte daquela maneira. Sabe-se
lá o que aquela criatura poderia fazer com ele. Talvez, nada, pelo fato do
viajante já estar morto. Mas, é sempre bom demonstrar respeito.
- Deixe-me continuar. Eu daria a você a chance de passa a
eternidade onde preferir, independente da necessidade de um julgamento. Ou, se
desejar, continuar assumindo o papel de protetor dos viajantes desavisados. Darei
a você um prazo de duas décadas para fazer o demônio desistir de prestar seus
serviços sujos onde não deve.
Satisfeito com aquela
oferta e ciente de que a Morte estava falando claramente, também pelo fato de
estar preocupado já que seu trabalho estava sendo praticamente roubado por
aquele infame espirito demoníaco que quase lhe tirara a vida, Roger aceitou a
oferta.
- 20 anos passam despercebidamente para uma entidade
espiritual como você. Não sofrerás com o efeito do tempo, tampouco perceberá o
passar dos anos. Se cumprir sua sentença antes do período concedido, terá que
esperar mesmo assim. – Completou a
Morte, sendo retribuída pelo consentimento de Roger.
A Morte, satisfeita
com a aceitação do salvador de seu emprego, concedeu a ele um retorno divino ao
mundo dos vivos, para poder executar sua missão. A própria Dona Morte não podia
realizar o trabalho de impedir o demônio, com medo da notícia de que seu mundo
desafiou o inferno das entidades do mal estariam entrando em conflito e, assim,
começar uma guerra. Apesar de assassina, a Morte era justa com seu trabalho e
com as regras, diferente dos demônios. Mas, a entidade não era aliada aos
anjos, o que significa que ela sempre estava sozinha.
- Qual o motivo da senhora nunca ter decido e enfrentado o demônio
que está fazendo seu trabalho? – Questionou Roger, curioso.
A Morte, então,
explicou toda sua situação, deixando Roger com ainda mais curiosidade quanto ao
sobrenatural, que para ele estava mais natural do que nunca antes estivera.
(Continua...)
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