sábado, 6 de dezembro de 2014

Conto: Cospele - Parte II

Para Jessica, que tem paciência para acompanhar meus contos desde sempre, com carinho.


 COSPELE - PARTE II

 “Agora sim, ela está mais bela do que nunca!”, pensava a insana mente de Luna enquanto a garota se encontrava de pé, ao lado do ensanguentado corpo já sem vida de Clara, segurando o bisturi cheio de sangue, pedaços de osso e miolos. “O fazer, agora?”, tornou a pensar. Por um momento, a garota chegou a não acreditar que havia cometido tamanha atrocidade, chorando por um arrependimento que passaria em questão de segundos. Após derramar falsas lágrimas suficientes, Luna retornou ao ponto de onde parou, voltando a pensar no que faria com Clara. Em vida, aquela gentil e inocente garota era uma famosa costume player da cidade, talvez uma das mais influentes, por isso que Luna reconheceu aquele rosto assim que dera de cara com ele pela primeira vez.

 Luna, então, finalmente chegou a um veredicto: se era Clara uma criatura humana que, em vida, fazia aquilo que sempre sonhara em fazer (fantásticos cosplays em eventos e festivais), além de possuir estrutura corpórea e pele mais belas que já viu, nada mais lógico e justo, de acordo com a mente de Luna, incorporar a “personagem” que acabara de matar. Sim, Luna havia decidido vestir-se, literalmente, da pobre Clara. Havia chegado a hora de colocar todos os seus treinamentos nas aulas de necropsia e no trabalho para deixar um cadáver “recém-empacotado” totalmente sem pele.

 Por sorte, o corpo já estava na ala de necropsia – seria uma enorme perda de tempo, ter que arrastá-lo até lá, se Clara tivesse sido morta em outra local -. Luna, então, ergueu Clara e colocou-a em cima da mesa cirúrgica. Quando começou o procedimento para retirar a pele da garota, o relógio marcava 22:15.
 A sala estava extremamente fria, o que tornava gelado os materiais metálicos que Luna usava para trabalhar na sua arte. Teve que esterilizar alguns, para facilitar o corte, com todo o cuidado possível para não torrar a pele de Clara. Percebeu, a garota, que o procedimento de retirar a pele por completo do cadáver não era não difícil, mas também não simples; Luna sentira diversão em fazer aquilo.

 Após horas e horas trabalhando em sua “roupa”, com as luvas e o avental sujos de sangue, morrendo de cansaço e ansiedade para ver o resultado, Luna havia terminado! Precisava apenas tirar o excesso de sangue e costurar algumas imperfeições, além de limpar toda a sujeira que havia sido feita na sala. Uma hora mais tarde, sua linda “fantasia” estava finalizada de vez; Luna fez questão de colocar nenhum tipo de substância química – éter, iodo, nem mesmo perfume – para afastar o cheiro da pele morta de Clara, considerado “natural”, pela garota.
 Luna, porém, esqueceu-se que o vigia dorminhoco sempre acordava às 3:15 da madrugada, hora que estava sendo marcada pelo relógio naquele exato momento, para fazer uma vistorias nas salas do instituto e se surpreendeu quando este abriu a porta da sala de necropsia deparando-se com seu trabalho “artístico”. A garota não teve outra escolha além de jogar uma caixa cheia de instrumentos cortantes em cima do trabalhador, que estava ainda sem entender que raios estava acontecendo, para distraí-lo e pegar o machado “para caso de incêndio” para dar logo um fim no intrometido. A machadada foi desferida no momento em que o homem corria em direção da garota, para imobilizá-la, exatamente no pescoço; o segurança não chegou a ser decapitado (não por completo), mas sua cabeça ficou metade afastada dos ombros. Luna não enxergava aquele novo defunto como belo e digno de se fazer algo com o corpo; decidiu, então, escondê-lo no freezer, junto com seus amigos. Talvez, um dia, o vigia pudesse se tornar um de seus amiguinhos.

 Mas, a garota lembrou-se que não mais precisava voltar para aquele lugar. Estava apaixonada. Não só apaixonada por aquele corpo perfeito, desprovido de pele, com os músculos e cartilagens à mostra, que estava à sua frente, mas também pela pessoa que estava prestes a se tornar. Aliás, devido ao ocorrido, tanto com Clara quando com o pobre vigia noturno, Luna precisaria se esconder. Mas, a preocupação de sua vida após a “estreia” de sua nova pessoa era o que menos lhe importava, no momento. A garota queria apenas voltar para casa pra se preparar para o evento um evento que, por incrível coincidência do destino, iria acontecer no final de semana. “O momento é esse!”, pensava constantemente Luna.


 Outra coisa complicada que a garota precisava urgentemente fazer era arranjar um jeito de levar o resto do corpo de Clara para casa. Para poder fazer isso, precisou “abater” a carne da falecida menina, para que esta coubesse no malão da universidade que acabara de esvaziar. Após abatido, o corpo, mole e escorregadio, coube na bagagem. Luna precisou limpar novamente a mesa, para não deixar (ainda mais) suspeitas de um crime artístico perfeito. 

 Era a hora de sair, finalmente! Chovia lá fora e Luna, que não havia levado guarda-chuva, cogitou até em usar sua nova “roupa” para proteger-se da água. Mas ela jamais deixaria um simples fenômeno pluvial tirar o cheiro original e único de corpo humano daquela diviníssima pele. Resolveu tomar um banho de chuva, então, e proteger o malão com um saco plástico gigante que havia encontrado nos armários do necrotério.

 Quando chegou o tão esperado fim de semana, Luna não poupou tempo para se arrumar e comparecer ao local onde aconteceria o evento de cultura pop mais importante de sua vida. Ao finalmente vestir-se da sua mais bela obra prima, sentiu uma certa energia extremamente positiva dentro de si, como se os anos de solidão, vergonha e convivência social apenas com pessoas mortas tivessem ficado para trás, como se sua vida estivesse realmente começando agora. Luna precisava bolar um nome para a “personagem” da qual estava vestida, apesar de este existir em nenhum anime, jogo, HQ, seriado ou filme. Diria, então, que era um cosplay literário, de uma obra antiga de terror que havia lido recentemente. O cheiro não mais incomodaria a quem chegasse perto, esperava Luna, e a consistência da pele estava em perfeitas condições.

 A garota já chegara pronta ao evento. À princípio, ficou um pouco acanhada, mas quando crianças e jovens surpresas com a realidade bárbara daquela fantasia, que mais parecia uma pele mutilada(o que realmente era) e cheia de sangue (o que na realidade era xarope de milho comestível, pois Luna jamais pensaria usar o sangue de Clara para outras pessoas não se sentirem “atraídas” também pelo cheiro). Quando chegou a hora do desfile, a multidão, que mesmo sem fazer ideia da origem daquela roupa tão realista, aplaudiu Luna de pé.

 Passados 6 meses desde aquele inesquecível evento, nunca mais se ouviu falar da mais nova cosplayer Luna Maria. Claro que, para não desperdiçar tanto talento, a garota precisou fazer novas roupas, isto é, de pessoas mais próximas, como seus pais e alguns vizinhos. O próximo festival, acontecerá dentro de 2 semanas. Será que Luna repetirá a dose, usando seu primeiro e mais amável cospele, ou inovará com outra barbárie que deixará a todos de queixo caído? 

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