terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Conto: Cospele (Parte I)

Para Jessica, que tem paciência para acompanhar meus contos desde sempre, com carinho.


COSPELE

Luna Maria é mais uma pobre pessoa de meus contos que perdera a razão por um motivo absurdo. A pobre jovem, estudante de medicina (mais precisamente anatomia humana), era apenas uma cidadã perdida e confusa, sem muitos amigos e fascinada com uma arte que havia acabado de descobrir a existência: Costume Players.

A garota era fascinada por cultura popular. Gostava de jogos, revistas em quadrinhos, animações japonesas, porém não possuía ninguém para compartilhar os gostos. Não tinha amigos vivos. O maior contato com seres humanos que Luna desfrutava, além dos familiares que pouco se importavam com sua existência (e provavelmente não se importariam com uma a ausência eterna da garota), era no necrotério em que trabalhava, nas noites de segunda à sexta. Sim, para Luna, uma amizade com pessoas vivas lhe causaria apenas sofrimento; ela não considerava os mortos capazes de ferir.

Às vezes, a jovem ficava fascinada com a beleza de alguns cadáveres. Em três anos de serviço no instituto de medicina legal de sua cidade, Luna percebeu que a maioria dos corpos que lá chegavam era de pessoas da sua idade, algumas bastante bonitas, tanto facial quanto estruturalmente; a garota observava com bastante atenção os mais perfeitos corpos, pois, afinal, era uma estudante de anatomia. Não se entristecia em ver tantos indivíduos que mal começaram a viver estendidos em refrigeradores e com etiquetas nos pés, mas sentia certa pena por causa de tanto desperdício.

 Alguns corpos possuíam tanta beleza, que a garota desejava aquilo para si. Em hipótese alguma, Luna Maria pensou em violar um dos cadáveres para roubá-los um olho, nariz ou qualquer outra parte do corpo. Pelo menos, não de um cadáver que jazia em seu trabalho.

 Certas noites, a moça imagina a vida além daquele prédio frio, de luz esverdeada e com odores de iodo e éter. Pensava se uma amizade com pessoas vivas realmente lhe causaria dor ou não. Era insegura. Sabia que, não só em sua cidade, mas nos quatro cantos do mundo, havia gente que compartilhava de seus gostos pela cultura pop, mas Luna jamais tentou contato com uma delas. Assim, em uma noite de solidão, a garota, antes de terminar todo o serviço para voltar pra casa, resolveu dar uma pausa e pesquisar a respeito de eventos de cultura pop, pois estava decidida de que iria para algum.

 “Ah! A quem estou querendo enganar?”, perguntava a garota a si própria. “Com certeza, eu vou desistir disso! Amanhã, a vontade passa.”, repetia mentalmente. Luna tinha uma mania, como muitos outros indivíduos da sua idade também possuem, de querer algo que inesperadamente chega a sua cabeça e, por fim, acabar desistindo, mas não esquecendo. Talvez. Nem mesmo a própria garota sabe. Esta resolveu, então, voltar aos seus afazeres, pois, assim como na maioria das noites, estava sozinha no necrotério com seus amiguinhos presuntos e estava na hora de recoloca-los no freezer.

 Após mais um fatídico dia de faculdade, Luna foi direto para seu tão “agradável” trabalho. Assim que terminou de bater o ponto e girar a maçaneta da porta de acesso à sala dos funcionários, deparou-se com uma garota extremamente familiar, ao lado de seu chefe. Não era uma menina comum, para Luna, que, aos seus olhos, além ter certeza que já havia visto, achou-a a única criatura viva realmente bela que já havia visto. De repete, lhe veio uma vontade de conhecer melhor aquela garota de longos cabelos loiros e ondulados, pele macia e clara e olhos tão verdes quanto à pedra que enfraquecia qualquer super homem, ou mulher.

 Enquanto seus olhos negros ainda estavam vidrados naqueles esverdeados, o franzino chefe das duas garotas interrompeu:

- Luna! Acorda, menina! Presta atenção no que eu tô falando. Não te contratei pra você ser uma morta que trata de outros mortos. É o seguinte, – continuou o homem. – essa aqui é a Clara, nova estagiária. Ela vai ficar hoje com você, no turno da noite, pra treinamento. Posso contar com você para ensiná-la sobre nosso trabalho?

 Luna ainda estava parada, perplexa com a beleza exterior daquela criatura viva que estava a sua frente, até que o chefe novamente lhe chamou atenção:

- Ô, menina! – Exclamou, estalando os dedos na frente do rosto da garota, que acordou. – Posso contar contigo ou não?!

- Pode, claro que pode! – Respondeu Luna involuntariamente, mesmo sem saber o que era pra ser feito.

- Muito bem. Clara, essa é a Luna, nossa... como posso dizer... estagiária? Não, ela está aqui há tanto tempo que já pode ser considerada “da casa”. A nossa Clara aqui também é estudante de anatomia.

- Olá! – Disse Clara, estendendo a mão para Luna. – Muito prazer!

 Sua voz era como o canto celestial de um anjo, que entrava em perfeita sincronia com os movimentos suaves de sua face.

 Quando finalmente o relógio bateu 18:00, o franzino chefe passou as últimas orientações e avisos para Luna e se despediu das duas jovens, que ficariam sozinhas durante uma longa madrugada. Quando enfim as garotas se encontravam sozinhas, com apenas companhia dos mortos do prédio – e do segurança dorminhoco que ficava no hall de entrada -, puderam conversar entre si (mesmo tendo Luna uma pequena dificuldade de se “comunicar” com os vivos). Clara, mais jovem e cheia de vida, era tão extrovertida que nada tinha a ver com a carreira que escolhera seguir.

- Ah! Estou no terceiro período do curso, ainda. – Respondeu Clara, quando Luna lhe perguntou sobre o curso de anatomia. – Resolvi me especializar na área de necropsia, pois, pode não parecer, mas é o que mais me atrai. – Completou a garota, sempre com um belo sorriso no rosto de dentes perfeitamente alinhados e brancos.

- O que você faz, além disso? – Perguntou Luna, ainda perplexa e com receios de falar.

- Bom... eu passo meu tempo livre com meus amigos, ou lendo, assistindo seriados e filmes, jogando. Ah, e fazendo preparativos para os meus cosplays que uso nos eventos de cultura pop.

 Quando Luna escutou aquilo, simplesmente gelou. A nova estagiária era uma cosplayer! Uma pessoa que faz aquilo que ela sempre sonhou em fazer estava, naquele exato momento, ao seu lado, dividindo o mesmo teto. A garota não conseguiu esconder as emoções, e logo soltou um grito.

 Clara, por outro lado, primeiramente estranhou a atitude de Luna de extrema surpresa, mas ficou feliz em saber que seu trabalho além da área de necropsia era reconhecido e venerado por sua colega. Foi aí que a menina teve a infeliz ideia de mostrar suas fotos de cosplay para a outra garota.

 Ao ver as diversas fotos dos mais belos e bem trabalhados cosplays no celular de sua mais nova colega, Luna simplesmente gelou. Não tirava o braço, com o pequeno aparelho eletrônico, da frente do rosto, nem mesmo piscava os olhos ou fechava a boca. Não sabia o que dizer, nem o que pensar, tampouco o que fazer para ter não apenas aquele talento invejável de Clara, mas também a garota somente para si. Por um momento, Luna escutou uma voz em sua mente dizendo-lhe que, finalmente, havia ela encontrado uma pessoa viva que valesse a pena. A garota, porém, contestou consigo mesma, alegando à sua própria mente que a paixão repentina que acabara de sentir por Clara se intensificaria se seu corpo estivesse desprovido de alma.

- Alô, Luna?! – Disse Clara, acenando para que sua colega pudesse voltar à razão. – Tá tudo bem?


- Sim! – Respondeu a garota, quando “acordou”. – Sim. Eu só fiquei maravilhada com seus trabalhos. Maravilhada até demais. 

Clara era, de fato, uma das cosplayers mais famosas dos eventos que aconteciam na cidade onde as meninas moravam. Quem a conhecia direito, sabia que a garota não poupava talento e gastos financeiros para investir nas roupas e acessórios das personagens que escolhia interpretar. Ela possuía duas coisas que Luna desesperadamente desejava: talento cosplayer e beleza externa. A pobre Clara nem mesmo sonhava em saber do perigo que estava correndo.

 Ao pegar de volta o celular, entregue por Luna, Clara foi até a sala dos empregados para buscar o seu caderno, pois acreditava que receberia as orientações sobre o trabalho e precisaria fazer algumas anotações. Luna não estava sabendo se conter mais, precisava dizer ou fazer algo para acabar de uma vez com aquela tortura mental ocasionada pelas “provocações” da nova estagiária, em sua cabeça. Quando Clara retornou com seu material de escrita, as duas jovens foram até a ala de dissecação dos corpos; lá, Luna começou a falar sobre os procedimentos, as normas de trabalho do local, mostrou os equipamentos, entre diversas outras coisas; no momento, a garota estava mais controlada, sentia aos poucos sua mente deixar de perturbar, por enquanto.


 Mas, quando Clara se encontrava distraída, anotando as diversas observações dadas por Luna, esta tornou sentir aquela manifestação que acontecia em sua mente, enquanto estava a observar aquela menina extremamente bela que estava à sua frente e, sem pensar duas vezes, decidiu de vez dar um basta naquele sentimento que lhe dominava. Da mesa de instrumentos, Luna pegou o mais amolado dos bisturis cirúrgicos e, sem mais nem menos, avançou contra Clara, que mal teve tempo de desviar o olhar do caderno para ver o que estava acontecendo, pois, quando o fez, já estava sem um dos olhos. Sem tempo para sentir dor, devido a rapidez do ataque, e sangrando litros e mais litros, a garota apenas sentiu algo quando o Luna desferiu o objeto cortante contra sua cabeça, perfurando-lhe o crânio.

Continua... 


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