COSPELE
Luna Maria
é mais uma pobre pessoa de meus contos que perdera a razão por um motivo
absurdo. A pobre jovem, estudante de medicina (mais precisamente anatomia
humana), era apenas uma cidadã perdida e confusa, sem muitos amigos e fascinada
com uma arte que havia acabado de descobrir a existência: Costume Players.
A garota
era fascinada por cultura popular. Gostava de jogos, revistas em quadrinhos,
animações japonesas, porém não possuía ninguém para compartilhar os gostos. Não
tinha amigos vivos. O maior contato com seres humanos que Luna desfrutava, além
dos familiares que pouco se importavam com sua existência (e provavelmente não
se importariam com uma a ausência eterna da garota), era no necrotério em que
trabalhava, nas noites de segunda à sexta. Sim, para Luna, uma amizade com
pessoas vivas lhe causaria apenas sofrimento; ela não considerava os mortos
capazes de ferir.
Às vezes, a
jovem ficava fascinada com a beleza de alguns cadáveres. Em três anos de
serviço no instituto de medicina legal de sua cidade, Luna percebeu que a
maioria dos corpos que lá chegavam era de pessoas da sua idade, algumas
bastante bonitas, tanto facial quanto estruturalmente; a garota observava com
bastante atenção os mais perfeitos corpos, pois, afinal, era uma estudante de
anatomia. Não se entristecia em ver tantos indivíduos que mal começaram a viver
estendidos em refrigeradores e com etiquetas nos pés, mas sentia certa pena por
causa de tanto desperdício.
Alguns corpos possuíam tanta beleza, que a
garota desejava aquilo para si. Em hipótese alguma, Luna Maria pensou em violar
um dos cadáveres para roubá-los um olho, nariz ou qualquer outra parte do
corpo. Pelo menos, não de um cadáver que jazia em seu trabalho.
Certas noites, a moça imagina a vida além
daquele prédio frio, de luz esverdeada e com odores de iodo e éter. Pensava se
uma amizade com pessoas vivas realmente lhe causaria dor ou não. Era insegura.
Sabia que, não só em sua cidade, mas nos quatro cantos do mundo, havia gente
que compartilhava de seus gostos pela cultura pop, mas Luna jamais tentou
contato com uma delas. Assim, em uma noite de solidão, a garota, antes de
terminar todo o serviço para voltar pra casa, resolveu dar uma pausa e pesquisar
a respeito de eventos de cultura pop, pois estava decidida de que iria para
algum.
“Ah! A quem estou querendo enganar?”,
perguntava a garota a si própria. “Com certeza, eu vou desistir disso! Amanhã,
a vontade passa.”, repetia mentalmente. Luna tinha uma mania, como muitos
outros indivíduos da sua idade também possuem, de querer algo que
inesperadamente chega a sua cabeça e, por fim, acabar desistindo, mas não
esquecendo. Talvez. Nem mesmo a própria garota sabe. Esta resolveu, então,
voltar aos seus afazeres, pois, assim como na maioria das noites, estava
sozinha no necrotério com seus amiguinhos presuntos e estava na hora de
recoloca-los no freezer.
Após mais um fatídico dia de faculdade, Luna
foi direto para seu tão “agradável” trabalho. Assim que terminou de bater o
ponto e girar a maçaneta da porta de acesso à sala dos funcionários, deparou-se
com uma garota extremamente familiar, ao lado de seu chefe. Não era uma menina
comum, para Luna, que, aos seus olhos, além ter certeza que já havia visto,
achou-a a única criatura viva realmente bela que já havia visto. De repete, lhe
veio uma vontade de conhecer melhor aquela garota de longos cabelos loiros e
ondulados, pele macia e clara e olhos tão verdes quanto à pedra que enfraquecia
qualquer super homem, ou mulher.
Enquanto seus olhos negros ainda estavam
vidrados naqueles esverdeados, o franzino chefe das duas garotas interrompeu:
- Luna!
Acorda, menina! Presta atenção no que eu tô falando. Não te contratei pra você
ser uma morta que trata de outros mortos. É o seguinte, – continuou o homem. – essa
aqui é a Clara, nova estagiária. Ela vai ficar hoje com você, no turno da
noite, pra treinamento. Posso contar com você para ensiná-la sobre nosso
trabalho?
Luna ainda estava parada, perplexa com a
beleza exterior daquela criatura viva que estava a sua frente, até que o chefe
novamente lhe chamou atenção:
- Ô,
menina! – Exclamou, estalando os dedos na frente do rosto da garota, que
acordou. – Posso contar contigo ou não?!
- Pode,
claro que pode! – Respondeu Luna involuntariamente, mesmo sem saber o que era
pra ser feito.
- Muito
bem. Clara, essa é a Luna, nossa... como posso dizer... estagiária? Não, ela
está aqui há tanto tempo que já pode ser considerada “da casa”. A nossa Clara
aqui também é estudante de anatomia.
- Olá! –
Disse Clara, estendendo a mão para Luna. – Muito prazer!
Sua voz era como o canto celestial de um anjo,
que entrava em perfeita sincronia com os movimentos suaves de sua face.
Quando finalmente o relógio bateu 18:00, o
franzino chefe passou as últimas orientações e avisos para Luna e se despediu
das duas jovens, que ficariam sozinhas durante uma longa madrugada. Quando
enfim as garotas se encontravam sozinhas, com apenas companhia dos mortos do
prédio – e do segurança dorminhoco que ficava no hall de entrada -, puderam
conversar entre si (mesmo tendo Luna uma pequena dificuldade de se “comunicar”
com os vivos). Clara, mais jovem e cheia de vida, era tão extrovertida que nada
tinha a ver com a carreira que escolhera seguir.
- Ah! Estou
no terceiro período do curso, ainda. – Respondeu Clara, quando Luna lhe
perguntou sobre o curso de anatomia. – Resolvi me especializar na área de
necropsia, pois, pode não parecer, mas é o que mais me atrai. – Completou a
garota, sempre com um belo sorriso no rosto de dentes perfeitamente alinhados e
brancos.
- O que
você faz, além disso? – Perguntou Luna, ainda perplexa e com receios de falar.
- Bom... eu
passo meu tempo livre com meus amigos, ou lendo, assistindo seriados e filmes,
jogando. Ah, e fazendo preparativos para os meus cosplays que uso nos eventos de cultura pop.
Quando Luna escutou aquilo, simplesmente
gelou. A nova estagiária era uma cosplayer! Uma pessoa que faz aquilo que ela
sempre sonhou em fazer estava, naquele exato momento, ao seu lado, dividindo o
mesmo teto. A garota não conseguiu esconder as emoções, e logo soltou um grito.
Clara, por outro lado, primeiramente estranhou
a atitude de Luna de extrema surpresa, mas ficou feliz em saber que seu
trabalho além da área de necropsia era reconhecido e venerado por sua colega.
Foi aí que a menina teve a infeliz ideia de mostrar suas fotos de cosplay para
a outra garota.
Ao ver as diversas fotos dos mais belos e bem
trabalhados cosplays no celular de sua mais nova colega, Luna simplesmente gelou.
Não tirava o braço, com o pequeno aparelho eletrônico, da frente do rosto, nem
mesmo piscava os olhos ou fechava a boca. Não sabia o que dizer, nem o que
pensar, tampouco o que fazer para ter não apenas aquele talento invejável de
Clara, mas também a garota somente para si. Por um momento, Luna escutou uma
voz em sua mente dizendo-lhe que, finalmente, havia ela encontrado uma pessoa
viva que valesse a pena. A garota, porém, contestou consigo mesma, alegando à
sua própria mente que a paixão repentina que acabara de sentir por Clara se intensificaria
se seu corpo estivesse desprovido de alma.
- Alô,
Luna?! – Disse Clara, acenando para que sua colega pudesse voltar à razão. – Tá
tudo bem?
- Sim! –
Respondeu a garota, quando “acordou”. – Sim. Eu só fiquei maravilhada com seus
trabalhos. Maravilhada até demais.
Clara era,
de fato, uma das cosplayers mais famosas dos eventos que aconteciam na cidade
onde as meninas moravam. Quem a conhecia direito, sabia que a garota não
poupava talento e gastos financeiros para investir nas roupas e acessórios das
personagens que escolhia interpretar. Ela possuía duas coisas que Luna
desesperadamente desejava: talento cosplayer e beleza externa. A pobre Clara
nem mesmo sonhava em saber do perigo que estava correndo.
Ao pegar de volta o celular, entregue por
Luna, Clara foi até a sala dos empregados para buscar o seu caderno, pois acreditava
que receberia as orientações sobre o trabalho e precisaria fazer algumas
anotações. Luna não estava sabendo se conter mais, precisava dizer ou fazer
algo para acabar de uma vez com aquela tortura mental ocasionada pelas “provocações”
da nova estagiária, em sua cabeça. Quando Clara retornou com seu material de
escrita, as duas jovens foram até a ala de dissecação dos corpos; lá, Luna
começou a falar sobre os procedimentos, as normas de trabalho do local, mostrou
os equipamentos, entre diversas outras coisas; no momento, a garota estava mais
controlada, sentia aos poucos sua mente deixar de perturbar, por enquanto.
Mas, quando Clara se encontrava distraída,
anotando as diversas observações dadas por Luna, esta tornou sentir aquela
manifestação que acontecia em sua mente, enquanto estava a observar aquela menina
extremamente bela que estava à sua frente e, sem pensar duas vezes, decidiu de
vez dar um basta naquele sentimento que lhe dominava. Da mesa de instrumentos,
Luna pegou o mais amolado dos bisturis cirúrgicos e, sem mais nem menos,
avançou contra Clara, que mal teve tempo de desviar o olhar do caderno para ver
o que estava acontecendo, pois, quando o fez, já estava sem um dos olhos. Sem
tempo para sentir dor, devido a rapidez do ataque, e sangrando litros e mais
litros, a garota apenas sentiu algo quando o Luna desferiu o objeto cortante
contra sua cabeça, perfurando-lhe o crânio.
Continua...
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