sábado, 26 de dezembro de 2015

Conto: Bonecos de Cera (2014)

 Não imaginei que seria convidado à festa de aniversário do filho caçula do “Coronel de Açougueiro”, apelido dado pelos habitantes do pequeno município no oeste do país ao governante militar local, que era muito querido pelos privilegiados financeiramente e visto como o demônio em forma de um homem baixo, franzino, porém barrigudo, de longo bigode preto e chapéu, pela classe baixa, devido sérios problemas ocorridos no passado, entre eles, o fato de o coronel ter ignorado o sumiço repentino de 5 crianças de famílias pobres no município, há alguns meses. A pequena cidade de onde relato a vocês essa triste e bizarra história possui um histórico assustador de desaparecimento de crianças. Creio que entenderão o motivo quando a leitura for finalizada.

 Como único herdeiro de um famoso empresário e senhor de engenho, que falecera recentemente, tive que largar meus queridos estudos de Direito da Europa para voltar ao meu país de origem, a fim de administrar todo o capital a mim concedido e terminar o que meu pai começou. Jamais quis pertencer à “nobreza” local. Pessoas ricas, inúteis e fúteis que nada, ou muito pouco, sabem das coisas me deixam enojado. Infelizmente, para não ser visto como antipático pela classe “dominante”, resolvi fazer o papel de rico sem caráter, algo que tenho a tristeza, porém nenhum remorso, de afirmar que meu pai já foi.

  O Coronel de Açougueiro não costumava deixar pessoas entrarem em sua propriedade. Sempre fazia suas festas na sede da prefeitura local, ou em casas de recepções. Nenhum habitante do município, tampouco pessoas de fora, era convidado para passar um dia em sua residência. Porém, no aniversário de 8 anos do filho mais jovem, o governante militar resolveu festejar com uma bonita celebração dentro da sua mansão, pela primeira vez.

  Quando lá cheguei, no dia da fatídica festa, deparei-me com um belo jardim, através dos portões de metal que impediam estranhos de entrar. O local era bastante esverdeado e tal coloração era bastante visível mesmo à noite; havia esculturas gregas nos jardins, uma enorme fonte que despejava a mais cristalina água e a passagem até o casarão, feita a partir de uma peculiar estrada de pedras, ela iluminada a luz de tochas flamejantes. Com um presente na mão, um sorriso forçado no rosto, os cabelos cacheados ensopados de banha e o sobretudo esquentando (até demais) o meu corpo, subi o pequeno degrau que levava até a porta e fui recebido pelo mordomo; este, de nariz empinado, guiou-me até o salão de festas da mansão. Ao passar pelo corredor principal, não pude deixar de notar a peculiaridade das estátuas que lá havia. Eram bonecos de cera extremamente bem trabalhados de pessoas jovens, a maioria crianças, e alguns animais; as estátuas estavam localizadas em fileiras, nos dois lados do extenso e largo corredor. Uma decoração diferente. Eu jamais vi algo parecido em nenhuma residência, apenas em museus.

  Ao finalmente chegar à recepção festiva infantil, que mais parecia aquele típico baile formal de ricaços que amam explorar o ego, fui apresentado, deixei o presente com o pequeno aniversariante e cumprimentei o anfitrião. Não pude deixar de elogiar aquela brilhante coleção de bonecos de cera.


- Por acaso está pensando em abrir um museu de cera com aquelas peças, senhor? – O Coronel era muito amigo de meu pai e eu o conhecia desde criança, portanto, era comum uma pequena intimidade entre nós, apesar de não vê-lo há anos e ser a primeira vez que pisava em sua residência.
  O Coronel riu e respondeu sarcasticamente, para entrar na descontração que, ainda não sei por que diabos, eu havia causado:

- Ah, magnífica ideia, jovem Souza! – Começou a gargalhar, devia estar ficando bêbado. – Amanhã de manhã providenciarei mais bonecos, a fim de abrir um museu de cera na capital!

 Após a rápida conversa que tive com o anfitrião, este afastou-se da festa para tratar de alguns assuntos, imaginei que não voltaria tão cedo, pois parecia algo importante.  Aproveitei, então, para dar uma volta no salão. Felizmente, havia crianças brincando, correndo, presumi que fossem colegas de escola do aniversariante, o que fez a festa não parecer tão formalmente cafona.
 Estava tudo indo bem, conversei com algumas senhoras simpáticas que me contaram boatos de que o Coronel renunciaria o cargo e se mudaria para a capital, após a festa. Não acreditei naquilo, primeiramente.

 Quando o velho relógio banhado a ouro do salão de festas bateu exatamente 18 horas da noite, de repente, todas as luzes, de lâmpadas incandescentes (aquela era uma das poucas casas da região que possuía tal invento), se apagaram. Pessoas e crianças gritavam assustadas, até que um minuto depois, a energia retornou. Os convidados aos poucos começaram a se acalmar, exceto uma mulher que não estava conseguindo localizar o filho pequeno.

 A senhora estava assustada, não sabia se o filho estava com medo ou se o pequeno ainda estava no salão. Provavelmente, a criança teria se escondido em algum lugar, porém a mulher parecia cada vez mais nervosa à medida que os minutos passavam. O mordomo, o mesmo que guiou-me até o salão, então, apareceu e acompanho a mulher até uma sala da residência, para fazê-la se acalmar, talvez. Após a mãe ter sido levada pelo homem de nariz empinado, a festa voltou ao “normal”. Obviamente, algumas pessoas sentiam-se preocupadas com a situação. Uma criança havia se perdido, afinal. Pensei, porém, que encontrariam em instantes o garotinho, o que deixaria a mãe bastante aliviada.

  Exatamente meia hora depois do primeiro apagão, outro aconteceu. Este, porém, demorou um pouco mais. Meu senso observador, que há pouco tempo descobri que possuía, disse-me que algo não estava certo. Temi que, quando a luz voltasse, outra criança sumisse. Ainda não sei como essa ideia me passou pela cabeça, sendo algo tão estranho e cruel, como se eu soubesse que, de fato, aquilo aconteceria, e pior. Quando as lâmpadas voltaram a iluminar, um casal chamava a gritos pelos dois filhos, que estavam brincando quando havia luz, antes do apagão. Senti, então, uma sensação horrível.

  Como era de se esperar, os pais das crianças recém-desaparecidas entraram em pânico, assim como aquela pobre coitada senhora anteriormente. Mais uma vez, o antipático mordomo veio ao salão e levou o preocupado casal à mesma sala onde levara a mãe da primeira criança que sumiu.

 “O que diabos estava acontecendo?” perguntavam-se as pessoas, inclusive eu. Presumi, porém, que o próprio mordomo havia encontrado elas e conduzira os pais ao seu encontro, ou que tudo não passava que uma brincadeira de mau-gosto de criança e o mordomo, que teria descoberto os engraçadinhos de um a um, havia tido a ideia de chamar os pais para dar uma lição de moral nas crianças. Porém, assim como a desesperada mãe, não sabemos mais nada a respeito do casal. O mordomo subiu ao palco onde a orquestra tocava para avisar aos convidados que estava tudo bem, que, de fato, era justamente aquilo que eu pensara: tudo uma brincadeira de criança, para assustar a todos que estavam lá. Pareceu a maioria se acalmar, após tal pronunciamento; eu, por outro lado, desconfiei, pois havia, realmente, um grande número de crianças correndo no salão, e não imagino que havia um determinado grupo que decidiu começar a suposta brincadeira, até pelo fato de a segurança da mansão ter sido reforçada por conta da celebração da noite. Que criança teria acesso aos equipamentos de energia da propriedade?  Sem falar que nem os pequenos, tampouco os seus pais, retornaram ao salão de festas.

  A fim de esfriar um pouco a cabeça, desloquei-me para uma janela, um pouco mais afastada da concentração, quase completamente escondida por uma enorme cortina de seda cor de champanhe; porém, acabei formulando novas especulações a respeito do que teria acontecido. Eu queria muito seguir o mordomo, entrar naquela sala estranha para me certificar se ele estava ou não falando a verdade; porém, havia seguranças na porta de entrada da sala. Se tudo estava bem, pra que tanta guarda? Não, não estava nada bem, e ainda não me conformo como aqueles ricos hipócritas não conseguiam enxergar aquilo!

 Enquanto refletia sobre os fatos ocorridos, uma mulher, com uma criança de aproximadamente 4 anos no colo, sua filha, talvez, aproximou-se de mim, para perguntar se estava tudo bem. Era jovem e aparentava-se preocupada com sua filha. Contou-me que queria sair da festa, antes que outro incidente estranho acontecesse, mas não a deixaram sair.

- Como assim?! – Perguntei indignado. – Estão deixando ninguém sair da mansão?

 A mulher respondeu:

- Foi o que os seguranças da porta da frente me disseram. Na verdade, fizeram-me entender isso, dizendo que seria de tamanha falta de respeito se abandonássemos a festa antes do importante pronunciamento no anfitrião e o corte do bolo do aniversariante. – Explicou a mulher. – Insistiram muito para nós duas ficarmos. Quando o vi parado diante à janela, sozinho, achei que fosse a única pessoa que eu devia contar o quanto estou preocupada. Você tem filhos?

 Antes de responder, pensei um pouco se iria, ou não, dizer a ela o quanto eu estava achando os acontecimentos suspeitos. Não desejava assustá-la ainda mais.

- Não tenho filhos. Mas entendo perfeitamente que queira proteger sua filha. – Parei um pouco para respirar fundo. – Senhora, eu acho que está acontec...

  Meu início de conversa foi interrompido por outro repentino apagão. Dessa vez, as pessoas gritaram com verdadeiro pânico.

- Segure na minha mão! – Falei para a mulher, estendendo a mão.

  Ela agarrou fortemente minha mão direita. Ambas as mãos, tanto a minha quanto a dela, estavam tremendo. Ouvi sua filha começar a chorar. De repente, senti sua mão separar-se da minha e escutei um pequeno grito sendo abafado. Nada consegui enxergar, devido à escuridão. Pela primeira vez, naquela noite, o medo tomou conta de mim por completo.

  Quando as luzes se acenderam novamente, olhei para o lado e me espantei ao ver que, desta vez, tanto a criança quanto a mãe haviam desaparecido. Ninguém mais teria visto aquela mulher com a filha junto a mim, portanto, não houve estardalhaços vindos dos demais convidados. Eu, por outro lado, estava horrorizado. Fiquei ainda mais perturbado quando aquele mordomo infeliz subiu ao palco novamente para informar que a brincadeirinha infantil já teria terminado – outra vez, no caso, o que deixou aquela desculpa ainda mais absurda -. Eu tinha a absoluta certeza de que aquilo era uma maldita mentira. Uma criança e a mãe foram simplesmente sequestradas debaixo do meu nariz! Eu tinha que descobrir onde elas estavam... onde todos os que desapareceram estavam!

  Havia seguranças em todos os locais que davam acesso aos cômodos do casarão. Era, portanto, impossível subir as escadas para investigar. Felizmente, a janela na qual eu encontrava próximo estava aberta. A ideia de fugir jamais passou pela minha cabeça, porém a de escalar até os andares superiores dava-me um pouco de receio;  mas aquilo tinha de ser feito, pois, talvez, era minha pessoa a única com noção do que estava realmente acontecendo. Tomei fôlego, respirei fundo, não pensei na tamanha loucura que estava a fazer, e escalei da janela para a superior. Se, por acaso, eu caísse, a queda não seria fatal, talvez me deixasse ferido, ou com algum osso fraturado.

  Ao subir, abri cuidadosamente a janela pelo lado de fora e entrei. O segundo andar parecia-me bastante calmo e pouco iluminado. O som da banda a tocar ecoava por toca a casa. Dessa forma, eu mal conseguia escutar um barulho por perto, se houvesse algum. Quando a música parou por um instante, escutei passos e imediatamente me escondi. Era o mordomo de nariz empinado que batera na porta dos aposentos do dono da propriedade, alertando:

- Estão todos no porão, senhor. Devo dizer-lhes para esperar ou podemos começar?

- Não. – Respondeu imediatamente o Coronel de Açougueiro. – Descerei agora mesmo.

 Do que eles estavam falando? Seja lá o que for, talvez a resposta estivesse no porão. Esperei o Coronel descer, para aventurar-me novamente nas janelas do casarão. A descida pareceu mais fácil. Quando meus pés se encontraram com o solo do quintal da propriedade, corri cautelosamente até encontrar a entrada do porão. Felizmente, não havia muitos seguranças nos arredores, apenas dois no portão principal. Quando finalmente achei a pequena porta que dava acesso ao local tão procurado por mim, abri uma pequena brecha, para poder espiar o que estava se passando.

 Lá estava o Coronel, gargalhando feito um louco, juntamente com alguns de seus empregados, exceto o mordomo. Estavam todos em volta de um enorme caldeirão borbulhando; pelo cheiro, o material fervendo parecia cera. Imediatamente, me veio na cabeça um terrível pensamento que, infelizmente, pude comprová-lo ao olhar atentamente todo o porão: lá estavam as crianças que haviam desaparecido, juntamente com seus pais; todos estavam nus, desacordados, de olhos bem abertos, porém não pareciam mortas, mas anestesiadas. Foi então que percebi o que realmente eram aquelas estátuas de cera, no corredor de acesso ao salão de festas: havia lá exatamente 3 bonecos de meninos e 2 de meninas, o mesmo número de crianças desaparecidas, há um tempo, além de diversas outras estatuas de crianças que “desapareceram” ao longo dos anos de governo do Coronel de Açougueiro. Fiquei extremamente em choque quando os empregados do coronel, após realizarem um processo de conservação do corpo das vítimas, despejaram as crianças no caldeirão e em seguida seus pais.


 - De fato, será uma bela coleção, senhor! – Exclamou um dos empregados.

 O Coronel abriu uma garrafa de vinho que trouxera consigo, serviu aos empregados e após tomar um grande gole na garrafa, disse:

- Senhores, eu declaro oficialmente aberto nosso ramo de comercialização de bonecos de cera! - Bebeu mais um gole. – Assim que eu terminar meu discurso de despedida e encerar a festa de meu filho, todos nós partiremos daqui para Londres. Madame Tussaud vai enlouquecer com as nossas obras. Ou, podemos abrir nosso próprio museu.

  Eu não podia, nem queria escutar mais nada. Fechei a pequena porta do porão, sem acreditar no que vi. Meu corpo tremia em todos os lugares, quase não consegui me pôr de pé, porém, era fundamental sair dali, pois o Coronel logo sairia também. Se ele soubesse que eu estava lá espiando... talvez eu até virasse um boneco. Eu realmente não sabia o que fazer, se chamaria a polícia ou outras autoridades, apesar de o psicótico anfitrião ser a única autoridade do município de Açougueiro. Enquanto recuperava-me do choque, tentando levantar do chão, senti o cano de uma garrucha encostado em minha cabeça e escutei a voz fria e assustadora do mordomo dizendo:

 - Se der uma palavra, perderá os miolos! O Coronel quer ver você, antes de matá-lo.

 Obrigando-me a andar até um lugar certo para encontrar o coronel e posteriormente terminar comigo, o mordomo não esperou que minha agilidade fosse tão grande a ponto de livrar-me da arma, desviando-me dela e jogando-a para longe quando quebrei o braço daquele imundo e covarde homem de nariz empinado. Felizmente, o mordomo era um homem velho e lento. Este, porém, possuía uma faca e, com a mão esquerda, deferiu-me um golpe que quase acertou minha barriga. Eu não tinha outra escolha além de segurar fortemente a mão do sujeito, fazendo-o apontar a faca para si e, com isso, enterrar o objeto pontudo no próprio peito. O mordomo, então, escancarou a boca e esbugalhou os olhos, antes de cair imóvel, perante meus pés.

 Sim, eu acabara de matar um homem, menos de uma hora de ter visto a maior brutalidade que alguém pode ver. Não tive a intenção, é claro, mas, não pude evitar. Mais uma vez sem saber o que fazer, fugi, deixando o corpo do mordomo traiçoeiro no chão e aquelas pobres pessoas queimadas com cera quente até se tornarem bonecos. Pulei o muro da propriedade (ainda não sei se fui ou não visto pelos seguranças) e corri. Quanto mais eu corria, a dor, a fúria, o arrependimento e todos os terríveis sentimentos que um indivíduo pode ter aumentavam em mim.

 Quando finalmente cheguei a minhas terras, tranquei-me dentro de casa. Decidi que seria mais prudente fugir para alguma cidade pequena distante, pois o coronel saberia que fora eu o responsável pela morte de seu mordomo, além de saber da sua doentia obsessão por bonecos humanos. Então, preparei uma mala com roupas, objetos de valor e todo o dinheiro que estava comigo, e tive a cruel, porém fundamental, decisão de incendiar a antiga casa de minha família, para todos do município, inclusive o próprio Coronel de Açougueiro, pensarem que eu estava morto.

  Foi justamente o que fiz: taquei fogo na minha própria residência. A partir daquele momento, passei tornei-me a vergonha da família Souza, mas aquilo tinha de ser feito e não havia mais nada em minha mente além de incendiar o casarão para forjar minha morte. Após tal feito, peguei meu melhor e veloz cavalo e parti daquele município que jamais retornaria outra vez.

 Comecei uma nova vida, numa cidade distante no interior. Arranjei um simples emprego para esconder minha identidade e usei boa parte do dinheiro que possuía para comprar uma nova casa e tentar constituir uma família. Em um ano, após a desgraça que, por hora, já havia me esquecido, tudo estava muito bem, até uma manchete de jornal chamar minha atenção: “Ex-Coronel inaugura museu de cera na Europa”. Aquilo me fez lembrar, não só da brutalidade que assisti, como também do fato de eu ter praticamente dado a ideia de abrir um museu para aquele maldito psicopata e, como sempre, eu não podia fazer nada. Que Deus tenha pena de minha alma.



Nenhum comentário:

Postar um comentário