sábado, 26 de dezembro de 2015

Uma História de Pescador

 Muitos pescadores, marujos e até oficiais da marinha dizem que essa é uma daquelas histórias pra fazer um velho Lobo-Do-Mar dormir. Impossível. Uma das únicas coisas que faz um homem que passa o dia ou a vida no mar realmente dormir é uma bebedeira após o expediente.

A tal “história” é um fato para os conhecidos do velho Bill Carter, um experiente pescador que teria ficado louco após os possíveis acontecimentos que aqui serão relatados. Carter, segundo antigos amigos de trabalho, nunca mais foi o mesmo, depois do ocorrido. Dizem até que o pobre homem foi acusado de matar o próprio filho deficiente. O jovem Jason possuía uma deficiência física cruel para um rapaz de sua idade: não possuía as duas pernas e, desde a infância, vivia confinado em uma cadeira de rodas. Os colegas de Bill jamais acreditavam na possibilidade dele ter assassinado o filho, pois sabiam eles que seu amor e dedicação pelo garoto eram incondicionais.

 Jason perdeu as pernas quando ainda era bebê, em um acidente de carro provocado pela sua mãe embriagada. Ela estava dirigindo em alta velocidade numa pista de limite até 24 milhas por hora, por ser uma via pública e perto da única escola pública da ilha onde viviam, até invadir a pista contrária e bater em cheio contra um ônibus escolar cheio de crianças. Muitas delas ficaram gravemente feridas, enquanto 3 vieram a óbito. Charlotte - esposa frustrada de Bill e mãe irresponsável de Jason - morreu na hora. A pobre criança sofreu ferimentos graves e precisou ter as duas pernas amputadas. Como se não bastasse, a história do seu começo de vida correu pela ilha (que era muito parecida com uma pequena cidade do interior, onde todo mundo sabe a respeito da vida de todo mundo, principalmente o padre) e, quando chegou na infância, o pequeno Jason não tinha sequer um amigo. As crianças da sua idade eram orientadas a não falar com ele, a não ser para zombar ou praticar atos de maldade. 

 Professores e funcionários da escola, cujos alguns alunos faleceram devido ao acidente provocado pela mãe do caro, ojerizavam o menino e faziam de tudo para que Jason, mesmo deficiente, não recebesse atenção.

 Revoltado com o comportamento primitivo e maldoso das pessoas da escola, Bill resolveu tirar o filho de lá e educa-lo sozinho na sua casa e, na maioria das vezes, no seu barco. Não queria, porém, que o garoto fosse pescador, mas algo maior.

 A tal história começa quando Jason atingiu seus 18 anos de idade. Na época, ajudava o pai e tirar a tirar a cabeça e as vísceras dos peixes, exigência brutal, segundo o próprio Bill, da companhia para a qual trabalhava. O pagamento, porém, daria para financiar uma boa faculdade para seu filho. Numa tarde de verão, o clima estava bastante agradável na ilha de Emmetty, e Bill resolveu sair com seus velhos amigos e companheiros do mar para almoçar, deixando Jason responsável pelo barco e pelos peixes.

- Qualquer coisa, se alguém estranho aparecer, ou algum Kraken emergir do oceano, coisas do tipo, é só tocar o apito. Tudo bem? – Aconselhou Bill.

- Pode deixar! Se alguma dessas coisas realmente acontecer, vou correndo até a cabine para chamar o senhor! – Brincou Jason, que movia a cadeira tranquilamente pelo convés, como quem estivesse passeando. O garoto gostava de passar tardes ensolaradas no barco ancorado. Sentia-se enjoado, porém, quando estava em alto-mar.

 Bill, então, rumou até a praia, onde aguardaria por sua carona até o destino combinado pelos seus amigos, deixando Jason a sós com os peixes que iria decapitar e destripar (com boas intenções, claramente) com o seu facão.

 Jason estava tranquilamente fazendo seus serviços com os peixes, deixando as cabeças e as vísceras em um balde e sempre com outro de reserva, caso desejasse vomitar. A tarde estava agradavelmente ensolarada. As gaivotas voavam de um lado para o outro e o cheiro da maré estava penetrando pelas narinas do jovem filho de pescador. Havia ninguém por perto, nem mesmo outros barcos ancorados. Tudo estava tranquilo, até Jason escutar um barulho vindo do mar, como se algum peixe tivesse pulado para fora d’água e voltado.

 Imediatamente, o garoto moveu sua cadeira até a borda do barco, para observar o que havia na água. Viu, porém, absolutamente nada. Após retornar aos seus afazeres, Jason escutou novamente um barulho. Este, por outro lado, era diferente. Assemelhava-se a uma voz a cantar. De repente, escutou um canto de uma voz que tocou todos os seus sentidos. Jamais escutara voz tão agradavelmente bela. 

 Ao olhar para trás, o garoto deparou-se com uma criatura do mar pendurada na borda, metade humana, metade peixe, de longos e ondulados cabelos loiros que cobriam metade de seu corpo, olhos mais verdes que o próprio oceano e um rosto angelical capaz de trazer paz e serenidade até ao pior nos demônios. Jason jamais vira coisa tão bela.

 A sereia, então, olhou com um semblante triste e confuso para as penas cotós de Jason, se perguntando, talvez, o motivo de um rapaz tão jovem e cheio de vida estar condenado a não poder andar. Jason, por outro lado, ainda estava em choque, paralisado e de boca aberta diante de tanta beleza que a criatura transmitia. Esta, porém, começou a se comunicar:

- Você é... diferente. – Falou a sereia.

Impressionado com o fato de uma criatura mitológica, que, há 10 minutos, jamais sonhava em conhecer, falar, o rapaz rebateu:

- Você também é...

- O que aconteceu com sua cauda e suas barbatanas? – Perguntou inocentemente a sereia.

- Bom... eu não sou como você. Sou humano. Humanos não precisam de barbatanas. Temos, sim, um tipo de cauda, chamado apêndice, que só serve para estourar, operar e causar estragos.

 A sereia riu da explicação de Jason. Um riso delicadamente fino e gracioso. Terminando de rir, respondeu:

- Eu sei disso, marujo. Queria apenas saber do paradeiro de suas pernas e seus pés. Não acho justo alguém tão jovem, bonito e cheio de vida para viver como ti estar confinado a esse tipo de objeto com rodas. – Disse a sereia, referindo-se a cadeira de rodas.

- Pois bem... muita gente mais importante do que eu, mais inteligente, mais velha, mais sábia, mais tudo, na verdade, também está confinada a viver em uma cadeira de rodas. Isso não é culpa nossa. É a vida que nos acontece. – Respondeu Jason, aproximando-se um pouco da criatura, para vê-la mais de perto.

 Houve um breve silêncio quando o rapaz e a criatura marinha se entreolharam. Olhos marrons como terra entrando em contato com os olhos verdes como o oceano. Quando, finalmente, a sereia começou:

- Eu posso levar você comigo, marinheiro. Lá embaixo, talvez você possa viver como alguém da minha espécie. – Disse, já segurando fortemente a mão de Jason.

- Eu... realmente não acho que seja uma boa ideia. Não posso desenvolver barbatanas, nem mesmo guelras.

- Olhe pra mim – disse a sereia, apontando para o próprio pescoço -, tenho guelras? Não! Você irá se adaptar, como um de nós. Lá nas profundezas, há uma magia que poderá conceder-lhe a capacidade de se mover.

 Mal sabia Jason que sereias são experts em atrair homens para as profundezas do oceano, contando a mais deslavada mentira ou, até mesmo, obrigando-o violentamente. No caso desta sereia, ela sabia jogar muito bem para o lado de inventar alguma história para atrair sua vítima.

 O rapaz estava evitando cair na tentação da bela sereia. Sabia que era impossível o fato de existir uma magia no fundo do mar que lhe daria pernas, cauda ou barbatanas, qualquer coisa que o fizesse se mover, porém, não conseguia tirar da cabeça a possibilidade. Ainda com uma mão presa a da sereia, Jason olhou novamente em seus olhos. Ela retribuiu o olhar e começou a sorrir. Não era, porém, aquele sorriso belo e sereno de antes, mas algo estranhamente malicioso e perturbador, como se a sereia estivesse prestes a fazer alguma grande maldade.


 Bill terminara de comer com seus amigos e decidiu passar rapidamente no barco para ver como estava seu filho e os peixes. Atravessando a pequena ponte de madeira que dava acesso aos transportes marinhos, Bill avistou seu barco e lá entrou. Chegando ao convés, esperava encontrar seu filho bem, com o serviço terminado; porém, o velho Lobo-Do-Mar deparou-se com a visão mais aterradora que tivera em toda a sua vida.

 Ao se deparar com aquilo, suas pernas estremeceram, fazendo-o cair no chão. Seu filho estava se arrastando pelo convés, usando um esfregão molhada para limpar uma poça de sangue deixado pelo corpo mutilado de alguma criatura marinha da qual Bill não podia acreditar em estar vendo. Jason limpava o sangue expelido quando este cortou o pescoço e a calda da sereia, matando a criatura que tentara lhe enganar. A cabeça do ser metade garota, metade peixe, ainda estava no convés, de olhos abertos. Jason estava feliz, cantarolando enquanto limpava o convés ensanguentado do barco. Quando Bill recuperou parte dos seus sentidos, notou que, perto do garoto, havia um tipo de causa de sereia, porém oco. O rapaz havia retirar toda a carne e os ossos da cauda da sereia. Ainda não conseguindo acreditar naquilo, Bill finalmente perguntou:

- Filho... você... você pode me explicar o que diabos está acontecendo?

 Jason parou de cantarolar e passar o esfregão no piso, olhou para o pai e respondeu calmamente:

- É minha chance, pai! Minha chance finalmente fazer algo, me mexer! Essa... sereia, ela quase me enganou, querendo me levar para as profundezas e me matar. Mas, eu fui mais esperto do que ela...

 Terminando essa última frase, o rapaz soltou uma assustadora gargalhada que aterrorizou o pai. Após isso, Jason pegou o tronco decapitado da criatura e, com dificuldade, arremessou para o mar; em seguida a cabeça.

- Cortei sua cauda. Vou usá-la para nadar, uma coisa que sempre quis fazer. – Disse Jason, enquanto se arrastava até a cauda da sereia.

- Meu filho... – Murmurou Bill - Pare com isso! Você está doente!

 Era, porém, tarde demais. O garoto já havia encaixado seus cotós de perna na ensanguentada e gosmenta cauda morta, em uma cena da qual Bill desejaria jamais ter presenciado, devido à tamanha bizarrice. Seu filho havia enlouquecido. Depois de todo sofrimento que já passara, de todo preconceito e ódio enfrentado por Jason, Bill, de certa forma, imaginava que a sanidade mental de seu filho iria se deteriorar.

 Bill tentou se levantar para impedir o filho de fazer uma bobagem ainda maior. Mas, o velho pescador fora golpeado ainda mais pelo o choque daquela bizarra situação quando Jason aproximou-se da borda do barco e, finalmente, se atirou ao mar. O rapaz tentava mover suas novas “pernas”, porém, algo estava fazendo-o se afogar. Não era apenas sua inexperiência com o nado – o rapaz jamais teve a oportunidade de nadar na vida -, mas alguma coisa estava puxando o garoto para as profundezas do oceano.

 Cambaleando até a borda, praticamente afogado pelas lágrimas e ainda em estado de choque, o velho Bill pôde observar seu filho se debater na água salgada que ainda se encontrava vermelha devido aos restos da sereia que lá foram jogados. O pescador jurou, por tudo que é mais sagrado, ter visto a cauda vestida em seu filho subir até o abdômen do garoto e apertá-lo. Jason, porém, não gritava, tampouco gemia de dor; continuava a rir e achar que estava, finalmente, livre. Quando Bill captou com seus lacrimejantes olhos a cauda consumir seu filho por completo e submergir o garoto para as profundezas, o velho Lobo-Do-mar desmaiou.

 Após quase 20 anos do fatídico possível ocorrido, o velho Bill ainda se encontra internado em um sanatório da capital. Muitos de seus amigos pescadores ainda lhe fazem visitas, sempre relatando que o ex-pescador conta a mesma história todas às vezes e que o pobre homem continua a sofrer com aquele trauma. Dizem até que Bill, desde então, jamais pôs um peixe na boca e que prefere passar os poucos anos de vida que lhe restaram longe do litoral ou de qualquer coisa que o faça lembrar o oceano.


 O corpo de Jason Carter jamais foi encontrado, assim como os restos da misteriosa sereia.

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