Muitos pescadores, marujos e até oficiais da marinha dizem
que essa é uma daquelas histórias pra fazer um velho Lobo-Do-Mar dormir.
Impossível. Uma das únicas coisas que faz um homem que passa o dia ou a vida no
mar realmente dormir é uma bebedeira após o expediente.
A tal “história” é um fato para os conhecidos do velho Bill
Carter, um experiente pescador que teria ficado louco após os possíveis
acontecimentos que aqui serão relatados. Carter, segundo antigos amigos de
trabalho, nunca mais foi o mesmo, depois do ocorrido. Dizem até que o pobre
homem foi acusado de matar o próprio filho deficiente. O jovem Jason possuía
uma deficiência física cruel para um rapaz de sua idade: não possuía as duas
pernas e, desde a infância, vivia confinado em uma cadeira de rodas. Os colegas
de Bill jamais acreditavam na possibilidade dele ter assassinado o filho, pois
sabiam eles que seu amor e dedicação pelo garoto eram incondicionais.
Jason perdeu as
pernas quando ainda era bebê, em um acidente de carro provocado pela sua mãe
embriagada. Ela estava dirigindo em alta velocidade numa pista de limite até 24
milhas por hora, por ser uma via pública e perto da única escola pública da
ilha onde viviam, até invadir a pista contrária e bater em cheio contra um
ônibus escolar cheio de crianças. Muitas delas ficaram gravemente feridas,
enquanto 3 vieram a óbito. Charlotte - esposa frustrada de Bill e mãe
irresponsável de Jason - morreu na hora. A pobre criança sofreu ferimentos
graves e precisou ter as duas pernas amputadas. Como se não bastasse, a
história do seu começo de vida correu pela ilha (que era muito parecida com uma
pequena cidade do interior, onde todo mundo sabe a respeito da vida de todo
mundo, principalmente o padre) e, quando chegou na infância, o pequeno Jason
não tinha sequer um amigo. As crianças da sua idade eram orientadas a não falar
com ele, a não ser para zombar ou praticar atos de maldade.
Professores e
funcionários da escola, cujos alguns alunos faleceram devido ao acidente
provocado pela mãe do caro, ojerizavam o menino e faziam de tudo para que
Jason, mesmo deficiente, não recebesse atenção.
Revoltado com o
comportamento primitivo e maldoso das pessoas da escola, Bill resolveu tirar o
filho de lá e educa-lo sozinho na sua casa e, na maioria das vezes, no seu
barco. Não queria, porém, que o garoto fosse pescador, mas algo maior.
A tal história começa
quando Jason atingiu seus 18 anos de idade. Na época, ajudava o pai e tirar a
tirar a cabeça e as vísceras dos peixes, exigência brutal, segundo o próprio
Bill, da companhia para a qual trabalhava. O pagamento, porém, daria para
financiar uma boa faculdade para seu filho. Numa tarde de verão, o clima estava
bastante agradável na ilha de Emmetty, e Bill resolveu sair com seus velhos amigos
e companheiros do mar para almoçar, deixando Jason responsável pelo barco e
pelos peixes.
- Qualquer coisa, se alguém estranho aparecer, ou algum
Kraken emergir do oceano, coisas do tipo, é só tocar o apito. Tudo bem? –
Aconselhou Bill.
- Pode deixar! Se alguma dessas coisas realmente acontecer,
vou correndo até a cabine para chamar o senhor! – Brincou Jason, que movia a
cadeira tranquilamente pelo convés, como quem estivesse passeando. O garoto
gostava de passar tardes ensolaradas no barco ancorado. Sentia-se enjoado,
porém, quando estava em alto-mar.
Bill, então, rumou
até a praia, onde aguardaria por sua carona até o destino combinado pelos seus
amigos, deixando Jason a sós com os peixes que iria decapitar e destripar (com
boas intenções, claramente) com o seu facão.
Jason estava
tranquilamente fazendo seus serviços com os peixes, deixando as cabeças e as
vísceras em um balde e sempre com outro de reserva, caso desejasse vomitar. A
tarde estava agradavelmente ensolarada. As gaivotas voavam de um lado para o
outro e o cheiro da maré estava penetrando pelas narinas do jovem filho de
pescador. Havia ninguém por perto, nem mesmo outros barcos ancorados. Tudo
estava tranquilo, até Jason escutar um barulho vindo do mar, como se algum
peixe tivesse pulado para fora d’água e voltado.
Imediatamente, o
garoto moveu sua cadeira até a borda do barco, para observar o que havia na
água. Viu, porém, absolutamente nada. Após retornar aos seus afazeres, Jason
escutou novamente um barulho. Este, por outro lado, era diferente.
Assemelhava-se a uma voz a cantar. De repente, escutou um canto de uma voz que
tocou todos os seus sentidos. Jamais escutara voz tão agradavelmente bela.
Ao
olhar para trás, o garoto deparou-se com uma criatura do mar pendurada na borda,
metade humana, metade peixe, de longos e ondulados cabelos loiros que cobriam
metade de seu corpo, olhos mais verdes que o próprio oceano e um rosto
angelical capaz de trazer paz e serenidade até ao pior nos demônios. Jason
jamais vira coisa tão bela.
A sereia, então,
olhou com um semblante triste e confuso para as penas cotós de Jason, se
perguntando, talvez, o motivo de um rapaz tão jovem e cheio de vida estar
condenado a não poder andar. Jason, por outro lado, ainda estava em choque,
paralisado e de boca aberta diante de tanta beleza que a criatura transmitia.
Esta, porém, começou a se comunicar:
- Você é... diferente. – Falou a sereia.
Impressionado com o fato de uma criatura mitológica, que, há
10 minutos, jamais sonhava em conhecer, falar, o rapaz rebateu:
- Você também é...
- O que aconteceu com sua cauda e suas barbatanas? –
Perguntou inocentemente a sereia.
- Bom... eu não sou como você. Sou humano. Humanos não
precisam de barbatanas. Temos, sim, um tipo de cauda, chamado apêndice, que só
serve para estourar, operar e causar estragos.
A sereia riu da
explicação de Jason. Um riso delicadamente fino e gracioso. Terminando de rir,
respondeu:
- Eu sei disso, marujo. Queria apenas saber do paradeiro de
suas pernas e seus pés. Não acho justo alguém tão jovem, bonito e cheio de vida
para viver como ti estar confinado a esse tipo de objeto com rodas. – Disse a
sereia, referindo-se a cadeira de rodas.
- Pois bem... muita gente mais importante do que eu, mais
inteligente, mais velha, mais sábia, mais tudo, na verdade, também está
confinada a viver em uma cadeira de rodas. Isso não é culpa nossa. É a vida que
nos acontece. – Respondeu Jason, aproximando-se um pouco da criatura, para
vê-la mais de perto.
Houve um breve
silêncio quando o rapaz e a criatura marinha se entreolharam. Olhos marrons
como terra entrando em contato com os olhos verdes como o oceano. Quando,
finalmente, a sereia começou:
- Eu posso levar você comigo, marinheiro. Lá embaixo, talvez
você possa viver como alguém da minha espécie. – Disse, já segurando fortemente
a mão de Jason.
- Eu... realmente não acho que seja uma boa ideia. Não posso
desenvolver barbatanas, nem mesmo guelras.
- Olhe pra mim – disse a sereia, apontando para o próprio
pescoço -, tenho guelras? Não! Você irá se adaptar, como um de nós. Lá nas
profundezas, há uma magia que poderá conceder-lhe a capacidade de se mover.
Mal sabia Jason que
sereias são experts em atrair homens para as profundezas do oceano, contando a
mais deslavada mentira ou, até mesmo, obrigando-o violentamente. No caso desta
sereia, ela sabia jogar muito bem para o lado de inventar alguma história para
atrair sua vítima.
O rapaz estava
evitando cair na tentação da bela sereia. Sabia que era impossível o fato de
existir uma magia no fundo do mar que lhe daria pernas, cauda ou barbatanas,
qualquer coisa que o fizesse se mover, porém, não conseguia tirar da cabeça a
possibilidade. Ainda com uma mão presa a da sereia, Jason olhou novamente em
seus olhos. Ela retribuiu o olhar e começou a sorrir. Não era, porém, aquele
sorriso belo e sereno de antes, mas algo estranhamente malicioso e perturbador,
como se a sereia estivesse prestes a fazer alguma grande maldade.
Bill terminara de
comer com seus amigos e decidiu passar rapidamente no barco para ver como
estava seu filho e os peixes. Atravessando a pequena ponte de madeira que dava
acesso aos transportes marinhos, Bill avistou seu barco e lá entrou. Chegando
ao convés, esperava encontrar seu filho bem, com o serviço terminado; porém, o
velho Lobo-Do-Mar deparou-se com a visão mais aterradora que tivera em toda a
sua vida.
Ao se deparar com
aquilo, suas pernas estremeceram, fazendo-o cair no chão. Seu filho estava se
arrastando pelo convés, usando um esfregão molhada para limpar uma poça de
sangue deixado pelo corpo mutilado de alguma criatura marinha da qual Bill não
podia acreditar em estar vendo. Jason limpava o sangue expelido quando este
cortou o pescoço e a calda da sereia, matando a criatura que tentara lhe
enganar. A cabeça do ser metade garota, metade peixe, ainda estava no convés,
de olhos abertos. Jason estava feliz, cantarolando enquanto limpava o convés
ensanguentado do barco. Quando Bill recuperou parte dos seus sentidos, notou
que, perto do garoto, havia um tipo de causa de sereia, porém oco. O rapaz
havia retirar toda a carne e os ossos da cauda da sereia. Ainda não conseguindo
acreditar naquilo, Bill finalmente perguntou:
- Filho... você... você pode me explicar o que diabos está
acontecendo?
Jason parou de
cantarolar e passar o esfregão no piso, olhou para o pai e respondeu
calmamente:
- É minha chance, pai! Minha chance finalmente fazer algo,
me mexer! Essa... sereia, ela quase me enganou, querendo me levar para as
profundezas e me matar. Mas, eu fui mais esperto do que ela...
Terminando essa
última frase, o rapaz soltou uma assustadora gargalhada que aterrorizou o pai.
Após isso, Jason pegou o tronco decapitado da criatura e, com dificuldade,
arremessou para o mar; em seguida a cabeça.
- Cortei sua cauda. Vou usá-la para nadar, uma coisa que
sempre quis fazer. – Disse Jason, enquanto se arrastava até a cauda da sereia.
- Meu filho... – Murmurou Bill - Pare com isso! Você está
doente!
Era, porém, tarde
demais. O garoto já havia encaixado seus cotós de perna na ensanguentada e
gosmenta cauda morta, em uma cena da qual Bill desejaria jamais ter presenciado,
devido à tamanha bizarrice. Seu filho havia enlouquecido. Depois de todo
sofrimento que já passara, de todo preconceito e ódio enfrentado por Jason,
Bill, de certa forma, imaginava que a sanidade mental de seu filho iria se
deteriorar.
Bill tentou se
levantar para impedir o filho de fazer uma bobagem ainda maior. Mas, o velho
pescador fora golpeado ainda mais pelo o choque daquela bizarra situação quando
Jason aproximou-se da borda do barco e, finalmente, se atirou ao mar. O rapaz
tentava mover suas novas “pernas”, porém, algo estava fazendo-o se afogar. Não
era apenas sua inexperiência com o nado – o rapaz jamais teve a oportunidade de
nadar na vida -, mas alguma coisa estava puxando o garoto para as profundezas
do oceano.
Cambaleando até a
borda, praticamente afogado pelas lágrimas e ainda em estado de choque, o velho
Bill pôde observar seu filho se debater na água salgada que ainda se encontrava
vermelha devido aos restos da sereia que lá foram jogados. O pescador jurou,
por tudo que é mais sagrado, ter visto a cauda vestida em seu filho subir até o
abdômen do garoto e apertá-lo. Jason, porém, não gritava, tampouco gemia de
dor; continuava a rir e achar que estava, finalmente, livre. Quando Bill captou
com seus lacrimejantes olhos a cauda consumir seu filho por completo e submergir
o garoto para as profundezas, o velho Lobo-Do-mar desmaiou.
Após quase 20 anos do
fatídico possível ocorrido, o velho Bill ainda se encontra internado em um
sanatório da capital. Muitos de seus amigos pescadores ainda lhe fazem visitas,
sempre relatando que o ex-pescador conta a mesma história todas às vezes e que
o pobre homem continua a sofrer com aquele trauma. Dizem até que Bill, desde
então, jamais pôs um peixe na boca e que prefere passar os poucos anos de vida
que lhe restaram longe do litoral ou de qualquer coisa que o faça lembrar o
oceano.
O corpo de Jason
Carter jamais foi encontrado, assim como os restos da misteriosa sereia.
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