Era madrugada da véspera de natal. Daqui a vinte e quatro
horas, pensava Ernest, sua casa estaria cheia de parentes distantes e pessoas
das quais o garoto não fazia ideia de quem era. Queria parar de pensar na data
comemorativa que mais odiava em todo o ano. Queria parar de sentir o que estava
sentindo desde que perdera o gosto pela vida. Desde que desistira da sua vida
acadêmica, profissional – seu sonho de ser um renomado escritor de ficção
científica havia decido pelo ralo, após uma vergonhosa desaprovação de uma
editora – e, principalmente, amorosa, nada estava dando certo.
O ano que estava
passando, 1955, não havia sido um de seus prediletos. Sabia Ernest que a culpa
não era do período de 365 dias, e sim de seus feitos e de si próprio, além,
claro, de algumas pessoas que vivem (algumas, na verdade, viviam) ao seu redor,
sem falar de algumas escolhas não sábias feitas pelo rapaz. Estava Ernest, um
garoto de apenas 19 anos, mas cheio de rancor, tristeza, mágoa e, segundo ele,
sofrimento, em seu quarto, à luz fraca, quase apagando, de uma pequena
luminária na sua mesa de cabeceira, sentado na sua cama, observando de sua
janela a neve branca cair e cobrir todo o quintal de sua casa. Ernest, na
verdade, aguardava um telefonema de uma pessoa da qual sentia muita saudade e
vontade de que ela retornasse. Sabia ele que por ela não era mais amado, mas,
uma garota como Diana, que, para Ernest, foi a pessoa mais importante de toda a
sua vida, era daquelas da qual valia a pena morrer para reconquistar. Ernest
estava determinado a lutar até o fim por Diana, ou esperar anos para que a
jovem tornasse a ter interesse por ele. As chances, porém, eram mínimas. Mas a
esperança seria a última a morrer.
Resolvido de que não
receberia uma ligação às 3:15 da madrugada, o garoto, então, resolveu levantar
de sua cama, sair de seu quarto e começar a caminhar pela residência. No exato
momento em que botou o pé para fora do quarto, Ernest sentiu uma gelada
corrente de ar subir pelos seus pés e correr em seu corpo até chegar à espinha,
fazendo seus cabelos da nuca arrepiar. Quando começou a caminhar pelo longo
corredor que dava acesso aos quartos, Ernest sentiu uma sensação estranha, além
de um cheio pouco comum. A casa simplesmente fedia a bolor e parecia estar
bastante empoeirada. Com uma lanterna na mão, o rapaz iluminava o corredor e
percebia quantas teias de aranha havia nas paredes, entre os quadros e em todos
os lugares. Talvez, a coisa mais estranha de tudo aquilo foi o fato de Ernest
ter escutado um barulho de asas batendo, do lado de fora da sua casa, como se
um pássaro de grande porte estivesse sobrevoando o telhado. Pouco menos de 3
minutos depois de ter escutado o barulho, este parou.
De repente, o garoto
sentiu a necessidade de ir até o quarto de seus pais para ver se estava tudo
bem. Quando lá chegou, a porta estava fechada e a maçaneta tão suja que, após Ernest
girá-la para poder entrar, a palma de sua mão ficou completamente preta. Quando
entrou, percebeu que nada, nem ninguém, lá havia. Não havia cama, não havia
poltrona, não havia o guarda-roupa, não havia espelho, não havia seus pais. Só
havia pó, muita sujeira e ratos no local. O barulho de asas tornou a acontecer,
ficando cada vez mais forte.
Assustado e com o
corpo estremecido, Ernest correu em direção ao quarto da sua irmã, para tentar
obter alguma resposta sobre o paradeiro de seus pais e o motivo da casa estar
tão empoeirada. O barulho das asas no telhado parecia segui-lo, quando, de
repente, parou outra vez. Enquanto
corria, o rapaz sentiu seu corpo desequilibrar e suas costas doerem.
Esborrachou-se no chão e teve dificuldades para levantar. Quando se pôs de pé,
sentiu que não poderia mais correr. Seu corpo estava dolorido e, de alguma
forma, desgastado. Andou, então, até o quarto de sua irmã. Chegando lá,
deparou-se com absolutamente nada além de um espelho.
Abrindo a porta do
quarto e dando de cara com o espelho, Ernest finalmente havia acordado. Percebeu
o que os 60 anos de arrependimento e decadência fizeram consigo, com sua casa,
com sua família, com sua vida. Sua pele enrugada, marcas de um passado cheio de
arrependimentos e mágoas de feitos e conquistas das quais o garoto, que, na
verdade, não passava de um velho covarde e acabado, havia desistido de lutar para
conseguir, nunca esteve tão suja, diante de um espelho tão antigo e mal
cuidado. Ernest desistira da vida, depois de uma juventude solitária, cheia de
decepções acadêmicas, profissionais, familiares e, principalmente, amorosas.
“Covarde!” repetia sempre a si. De tanto se considerar um
covarde, pôs tal ideia na cabeça e passou a viver como um. Enquanto seus
familiares subiam, Ernest descia um nível a cada ano que passava.
Convencido de que
teria despertado de um sonho – ser jovem novamente e fazer de tudo para
reconstruir o que ele havia deixado escapar, isto é, seu futuro -, Ernest
resolveu descer as escadas de sua velha residência (uma casa antiga, porém
extremamente espaçosa, pois sua família possuía um dos sobrenomes mais
influentes da cidade) e passar o resto da madrugada na sala de estar, espaçosa,
porém, vazia. O lugar abrigava, agora, apenas uma lareira e algumas poltronas.
No passado, em períodos de festas de fim de ano, aquele local escuro, mórbido e
vazio, na qual Ernest se encontrava, era repleto de alegria, luzes decorativas,
crianças correndo, família reunida e muito amor. Infeliz era o velho Ernest,
que pouco dava valor ao Natal em família, quando todos estavam vivos para
comemorar. Seus únicos parentes que ainda viviam, sobrinhos netos e primos de
segundo e terceiro grau, mal sabiam de sua existência.
O velho, então,
aproximou-se da lareira e acendeu uma pequena chama, para tentar se aquecer e
iluminar um pouco o ambiente escuro de sua casa. Sentando-se numa poltrona que
ficava de frente para a lareira, Ernest procurou se aquecer. Estava sozinho,
como sempre, porém, a solidão daquela véspera de natal, não era como a dos
feriados passados. Sentia-se dentro do livro “Um Conto de Natal”, de Charles
Dickens, onde sua pessoa era a imagem do “fantasma do natal futuro” do velho
avarento Scrooge. Pensando nisso, Ernest levou as mãos ao rosto e começou a
chorar, coisa que jamais sonharia em fazer. Estava realmente vulnerável.
O velho acreditava
que, pelo menos, a batida de asas estava apenas na sua imaginação enquanto
ainda pensava ser jovem. Antigamente, antes de perder o sentido da vida, Ernest
tinha uma paixão por aves. Estudava-as quando podia e sempre mantinha seu livro
de “Pássaros Observados” atualizado. Diana, a mulher mais importante de toda a
sua vida, apesar de ter lhe causado muita dor, havia lhe dado um corvo de
presente, há muitos anos, no natal de 1954. Ernest e o animal tornaram-se
grandes amigos, desde então. O corvo é a ave mais inteligente do mundo animal e
o velho Ernest, que na época era um rapaz prestes a se perder para sempre,
tinha total carinho pela espécie, devido principalmente ao poema que ele mais
gostava, de seu autor favorito, Edgar Allan Poe: “O Corvo”. O animal, porém, o
deixou no mesmo dia em que Diana lhe disse adeus, para sempre. Simplesmente,
bateu as asas e voou de seu pequeno santuário, que ficava dentro do quarto do
rapaz.
Atormentado pela
mulher que mais amou e pelo melhor presente que ganhara na vida, Ernest jurou
que ainda podia ouvir as asas batendo. Porém, as proporções sonoras do batido
não se assemelhavam com o voo de um corvo, mas de uma ave maior. Com medo, o
velho procurou levantar-se rapidamente para observar pela janela se avistava
alguma coisa do lado de fora da residência. Parecia tudo estar tranquilo, a não
ser pela neve que caia constantemente.
De repente, ouve-se
um estrondo, como se uma dúzia de tijolos estivesse sendo derrubado de dentro
da casa, o que, de fato, estava acontecendo. Uma parede do lado direito da
chaminé havia “explodido” e, de dentro dela, uma figura monstruosa surgiu,
sobrevoando a casa enquanto o velho Ernest gritava aterrorizado, pelo socorro.
Era um corvo gigante, com mais de 2 metros de altura e 5 de largura, de penas
extremamente escuras e um olhar tenebroso, voltado a tudo que encarava pela
frente. Enquanto ainda gritava por ajuda, o animal destruía a casa do velho,
arrastando suas asas pelos lustres, derrubando-os, bicando a chão de madeira,
espalhando pedaços pontudos para todos os lados. Ernest, caído no chão, se
arrastou até uma mesa na sala de jantar, ficando escondido debaixo dela. Rezou
para que alguém o socorresse, mesmo sabendo que estava sozinho. Pediu para que
aquilo não fosse verdade, para que ele enfim acordasse de um pesadelo que
enfrentava desde 1955 e que só agora chegara ao ápice. No que aparentava ser
seus últimos momentos de vida, pensou em Diana. Pensou no quanto aquela mulher
havia mudado sua vida para melhor, em um momento de profunda dor e solidão, e,
sem mais nem menos, o abandona. Pensou no quão tolo ainda era por amá-la.
Pensou em como seria seu paraíso, quando finalmente estivesse morto: se Diana
estaria ao seu lado, mesmo que ela não fosse real e apenas um delírio de sua
alma recém-desencarnada.
O corvo gigante,
então, finalmente alcançou o velho Ernest. Retirando violentamente a mesa que
protegia o homem do chão, o animal o encarou por um instante antes de cortar
sua garganta com as afiadas garras de uma ave. Quando finalmente sinalizou que
iria fazer, Ernest despertou em seu quarto.
Ofegando muito e
ainda bastante assustado com o que havia vivido no pesadelo, o rapaz viu que
seu relógio de pulso marcava 3:16 da madrugada de uma véspera de Natal de 1955.
Ainda sem acreditar no que acabara de ver e presenciar, o garoto sentou-se na
sua cama e começou a chorar. Aquela visão do seu futuro era o que ele precisava
para não jogar suas oportunidades na lixeira. Não podia viver com base no
sofrimento ou na mágoa, mas procurar uma saída para cima, em vez permanecer no
chão. Levantar voo como uma ave. Determinado a não permitir que sua história
fosse semelhante ao seu “fantasma do natal futuro”, Ernest deu a si próprio um
presente de natal baseado nos seus aprendizados no passado: uma nova chance.
Decidiu que tornaria
a escrever e melhorar cada vez mais seus dons literários, além de concluir os
estudos para ingressar na Universidade de Letras. Outra coisa que o rapaz
percebeu que precisava fazer era dedicar-se a sua família. Jamais seria ele um
homem de verdade se não amasse sua família como ela o amava.
No dia de Natal,
Ernest resolveu descer para se reunir com sua família. Antes, resolveu se
trocar para uma roupa mais apropriada: um sobretudo marrom, para se livrar do
frio, e um par de botas pretas.
Preparando-se para abandonar o quarto, o rapaz
ouviu alguma coisa tocar na sua janela. Pareciam batidas. Batidas de bico de uma
ave. Ernest correu em direção a sua janela e a abriu, deixando seu corvo de
estimação, que havia fugido desde o dia mais triste de sua vida, retornar para
casa. Apesar de todos os pesares, o rapaz esteva realmente emocionado com a
volta do seu pássaro que logo se acomodou no seu pequeno santuário, que ainda
estava armado.
Feliz por ter sua ave
de volta, Ernest baixou a cabeça por um instante e pensou em Diana. O rapaz imaginou
o quanto ela estava bem e que a vida da garota seria imensamente melhor sem ele
por perto. Enfim, aceitou. Mas ainda esperava revê-la, um dia. Quando finalmente
saiu do quarto e bateu a porta para rumar às escadas que dariam acesso à festa
de Natal, escutou o telefone de seu quarto tocar.
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