sábado, 10 de dezembro de 2016

Conto: O Demônio da Estrada - Parte I

 Roger Carter era apenas um viajante quando deu de cara com o perigo. Apesar de entender as diversas lendas locais, tendo estudado profundamente sobre os demônios e outras criaturas medonhas de sua região, o homem de meia idade, humilde e excepcionalmente esperto – além da inteligência lógica, a esperteza de jogador era uma das, senão a maior, vantagens mais importantes do viajante britânico – , caminhava lentamente por uma tortuosa estrada no calar da noite. A escuridão era rompida apenas pela luz do luar e o brilho das estrelas, que embelezavam o céu azul escuro noturno, fazendo com que o viajante olhasse mais para cima do que para frente.

 Como a maioria das estradas desertas e mal iluminadas, aquela da qual Roger peregrinava, de acordo com alguns moradores antigos da região, pertencia a um espírito demoníaco que não tolerava ser desafiado, muito menos enganado. Se algo acontecia naquela estrada a mando do espírito, era para realmente acontecer. Porém, se alguém tivesse a audácia de desfazer aquilo que deveria pela entidade ser feito, sofreria com as consequências.

 Enquanto caminhava, ainda desatento com o que estava a sua frente, Roger percebeu que o silêncio noturno foi rompido pelo grunhido desesperado de um melro negro que estava caído ao chão, tentando recuperar suas asas quebradas para tentar voar. Comovido com aquela situação, Roger se deu conta de que não podia deixar o animal morrer daquele jeito. Por sorte, a ave estava caída justamente ao pé da árvore onde localizava seu ninho. Bastou o viajante inglês interromper sua viagem para ajudar o pássaro negro, que só estava esperando um momento como aquele para ficar livre, ou 50%, já que ainda não tinha forças para levantar voo. Se o pequeno animal tivesse sido deixado lá, correria o risco de cair de uma ribanceira ao lado de sua árvore, se tentasse levantar voo.

 A partir do momento em que Roger colocou o pássaro em seu ninho, uma névoa surgiu ao redor do viajante, que sentiu um frio imensurável, além de uma estranha sensação de algo estava ocasionando um certo peso no ambiente. Da névoa gelada esbranquiçada no meio da escuridão, surgiu então uma figura humanoide cinzenta, com o rosto desprovido de face, a não ser pelos gigantes olhos extremamente negros, dois chifres pontudos na testa, e membros (braços e pernas) longos. Roger não tinha dúvidas de que estava de cara com o demônio que tomava conta daquela estrada deserta.

 Demonstrando surpresa em vez de medo e respeito no lugar de desespero, o viajante decidiu cumprimentar a besta que o encarava com aqueles olhos que mais pareciam duas bolas de bilhar pretas.

- Boa noite. Em que posso ajudar?

  Surpreso com tamanha ousadia humana, o demônio respondeu:

- O senhor com certeza deve ter uma noção do que acabou de fazer, não é mesmo, Roger Wilson Carter? – A entidade apontava para o ninho, onde se encontrava o melro.

- Acho que não estou entendendo, senhor. – Roger, no fundo, estava amedrontado, mas ainda mais curioso com o que um demônio da estrada poderia fazer com ele.

 Se aproximando do viajante, de modo que seu rosto cinzento pontiagudo sem face estivesse bem perto do de Roger, o demônio explicou:

- Aquele pássaro foi deixado no chão para morrer. A noite não é um horário adequado para voar.

- Para mim, é uma belíssima noite para voar, meu caro. – Respondeu o viajante, olhando para as estrelas com um sorriso de sarcasmo no rosto.

 Impaciente, o demônio levantou a voz para falar o quão estava surpreso com a ousadia do mero mortal:

- Você quebrou uma regra imposta por mim, o guardião dessa estrada. Ninguém rompe meus ofícios. Se aquela ave estava condenada para a morte, ela devia morrer. Mas, você, um mero viajante, humano, mortal, rompeu meu próprio trabalho. Estou surpreso com isso, porém, não devo deixar que você conclua essa viagem com vida.

 Roger, pensativo, respondeu:

- Eu não disse para onde estou indo. Posso chegar ao meu destino se der mais um passo. Ou, talvez eu já tenha concluído minha viagem.

 O demônio estava sem entender.

- Se eu não disser ao senhor qual o meu destino, nem confirmar se já me encontro neste, não há como me matar, não é mesmo?

 Se sentindo profundamente humilhado com o sarcasmo e a arrogância humana, o demônio pegou seu provocador pelo pescoço, erguendo-o e jogando-o contra a árvore do melro, praticamente na beirada da ribanceira. Assustado com tamanha violência, mas não hesitando em provocar o espírito maligno, Roger comentou:

- Se me matar aqui e agora, também estará quebrando uma palavra por você imposta.

 Sem saber o que responder o demônio decidiu mudar sua palavra, já que todo supremo poder cabia a ele.

- Você está em minha estrada, sob os meus domínios. Quem faz as ordens aqui sou eu e disso você sabe muito bem. Eu levarei sua alma comigo, deixando apenas seu corpo fétido e imundo aqui. No inferno onde eu moro, você sofrerá as consequências e aprenderá que toda alma insolente paga caro por seus atos.

- Você pode me matar, mesmo que esse seja um trabalho para a Morte; mas decidir o que fará com minha alma não cabe a você, e sim aos anjos ou demônios de verdade.

 Enfurecido, o espírito demoníaco respondeu:

- Eu decido o que faço com gentalhas que cruzam meu caminho e me insultam em minha própria casa!

 Sereno como a noite até naquele momento de extrema tensão e mais confiante como nunca estivera,  Roger arriscou perguntar o que seria sua possível salvação:

- Posso, pelo menos, ter um último pedido, senhor?

- Se for possível, sim. – Concordou o demônio, se preparando para tirar a vida do viajante.

- Posso tomar um último gole? – Perguntou Roger, retirando do bolso de seu casaco uma pequena garrafa de vidro contendo um líquido transparente.

 Em nenhum momento, por sorte de Roger, o demônio desconfiou o que poderia ser aquela bebida. Decidiu simplesmente deixar o viajante beber seu último gole e acabar de uma vez como tudo aquilo. 

Concordando em deixar o viajante tomar seu último trago, o demônio respondeu:

- Não negarei seu último pedido. Pode beber. – Disse fazendo um gesto com a mão, como que permitindo que o viajante realizasse sua última bebedeira.

 Roger, porém, não tirou da mochila uma garrafinha de whiskey, tampouco de rum ou qualquer outra bebida alcoólica, mas um frasco contendo um líquido transparente que mais parecia água. Não conseguindo tirar a tampa do frasco, o viajante torceu várias vezes aquela fechadura, até o demônio perceber sua dificuldade e, impaciente com aquela demora, se oferecer para abrir aquilo.

 Quando a tampa foi finalmente removida, Roger, rápido como um raio, deu uma tapa no frasco que estava nas mãos do espírito demoníaco da estrada, fazendo a Água Benta que estava lá dentro derramar sobre o peito daquela criatura, queimando-o. Agonizando de dor, o demônio caiu ao chão enquanto uma fumaça branca exalava de seu corpo cinzento. Roger, por sua vez, decidiu rolar ribanceira a baixo para escapar do assassino de corpos e ladrão de almas. O viajante simplesmente se jogou para baixo, rolando em meio ao gramado e às pedras e, quando finalmente chegou ao solo, estava à beira da morte devido aos ferimentos da queda.

 Feliz por ter se livrado do demônio, Roger, porém, sabia que estava morrendo. Tinha total certeza de que aquela situação, com as duas pernas quebradas, um galho enterrado em sua barriga, vários cortes e ferimentos em todos os lugares do corpo e a cabeça parcialmente esmagada por uma pedra, não o deixaria vivo por muito tempo. Ao finalmente deixar o mundo material, o viajante se viu numa atormentadora penumbra.

 O local da qual sua alma se encontrava estava realmente escuro e amedrontador. Roger sabia que algo desagradável estava por mim. Foi quando, de repente, uma figura negra, como o ambiente da qual se encontrava, encapuzada e alta surgiu caminhando em sua direção. Roger tinha absoluta convicção de que estava se deparando com a morte, só não entendeu o porquê da famigerada entidade aparecer após ele já ter morrido.

 Quando chegou bem próximo do falecido viajante, a morte começou a falar:

- Você é uma pessoa esperta, Roger Wilson Carter. Ou, pelo menos, foi.

“Pronto!”, pensou Roger. “Mais uma entidade sobrenatural para desafiar”.

A Morte, porém, continuou:

- Não, você não precisa me desafiar. – Respondeu a criatura, que podia ler os pensamentos dos mortos. – Você, neste momento, devia estar no julgamento dos anjos e demônios superiores, para determinar onde seria sua eternidade. No paraíso ou no inferno. Porém, decidi trazê-lo secretamente ao meu limbo particular.

 Roger não questionou, apenas ouviu o que a Morte tinha a dizer. Estava curioso demais para fazer perguntas, dizendo apenas:

- Diga-me o motivo de eu estar aqui.

- Quero que você, o único ser vivo que conseguiu desafiar e vencer um espírito demoníaco, trabalhe para mim. Na sua argumentação com a criatura da estrada, você mesmo que disse que o serviço de matar cabia a mim e, com isso, meu nome foi honrado. Tu também fizeste com que o demônio não levasse a alma do pássaro que estava caído. Portanto, Wilson Carter, preciso de alguém, espeto o suficiente como você, para evitar que aquele demônio continue realizando o serviço que cabe a mim. Eu tenho o controle sobre a vida e a morte, não qualquer entidade demoníaca que assombra uma estrada. 

Roger, atento, porém trêmulo com tal situação que enfrentava, demonstrou satisfação com o que acabara de ouvir. Ele teria a chance de evitar mortes não planejadas pela própria Morte, além de enganar cada vez mais o demônio que tanto atormentava as criaturas da Terra. Por outro lado, o viajante recém-falecido, questionou sobre o que receberia ao prestar seus favores à Dona Morte.

- O que ganharei com isso? Poderei voltar ao mundo dos vivos e viver entre eles?

- Infelizmente, não posso permitir que faças isso. Você retornará ao mundo dos vivos, mas na forma de espírito, um espírito protetor que terá total poder de impedir o encontro e a morte prematura e não planejada ou executada por mim dos indivíduos com o demônio da estrada.

- Ainda não me disse o que irei ganhar... – Por um momento, Roger achou que não devia estar pressionando a Morte daquela maneira. Sabe-se lá o que aquela criatura poderia fazer com ele. Talvez, nada, pelo fato do viajante já estar morto. Mas, é sempre bom demonstrar respeito.

- Deixe-me continuar. Eu daria a você a chance de passa a eternidade onde preferir, independente da necessidade de um julgamento. Ou, se desejar, continuar assumindo o papel de protetor dos viajantes desavisados. Darei a você um prazo de duas décadas para fazer o demônio desistir de prestar seus serviços sujos onde não deve.

 Satisfeito com aquela oferta e ciente de que a Morte estava falando claramente, também pelo fato de estar preocupado já que seu trabalho estava sendo praticamente roubado por aquele infame espirito demoníaco que quase lhe tirara a vida, Roger aceitou a oferta.

- 20 anos passam despercebidamente para uma entidade espiritual como você. Não sofrerás com o efeito do tempo, tampouco perceberá o passar dos anos. Se cumprir sua sentença antes do período concedido, terá que esperar mesmo assim.  – Completou a Morte, sendo retribuída pelo consentimento de Roger.

 A Morte, satisfeita com a aceitação do salvador de seu emprego, concedeu a ele um retorno divino ao mundo dos vivos, para poder executar sua missão. A própria Dona Morte não podia realizar o trabalho de impedir o demônio, com medo da notícia de que seu mundo desafiou o inferno das entidades do mal estariam entrando em conflito e, assim, começar uma guerra. Apesar de assassina, a Morte era justa com seu trabalho e com as regras, diferente dos demônios. Mas, a entidade não era aliada aos anjos, o que significa que ela sempre estava sozinha.

- Qual o motivo da senhora nunca ter decido e enfrentado o demônio que está fazendo seu trabalho? – Questionou Roger, curioso.


 A Morte, então, explicou toda sua situação, deixando Roger com ainda mais curiosidade quanto ao sobrenatural, que para ele estava mais natural do que nunca antes estivera. 

(Continua...)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O Rei e a criatura

Republicação do conto original "A Rainha, o diabo", de fevereiro de 2014. Resolvi escrever esse pequeno conto, com estrutura semelhante ao de roteiro teatral, algo bastante diferente do que costumo fazer, para aproveitar uma ideia concedida pela canção "Killer Queen", da banda Queen. 


- Majestade! Majestade, por favor, atenda-me!

- Que queres de mim, Edward? Não sabes que horas são?

- Por favor, senhor, abra a porta! É sobre vossa Rainha.

O Rei abre a porta de seus aposentos:

- Aconteceu algo?

- O pior, senhor! O pior!

- Ela despertou.

- Exatamente!

- Certificou-se de que ela está perfeitamente trancada e amordaçada?

- Provavelmente, Majestade, sua senhora já deve ter arrebentado as correntes. Nossas únicas esperanças são os 250 guardas instalados na torre.

- Os cidadãos, eles estão evacuando o reino?

- Creio que sim... Meu Deus! Majestade, talvez seja melhor nos apressarmos!

- IREI A LUGAR NENHUM! SAIREI DESTE CASTELO APENAS QUANDO MINHA ESPOSA ESTIVER NOVAMENTE DESACORDADA! – Gritou o Rei.

- Senhor, eu imploro! Não ouviu? Sua majestade está massacrando todos os seguranças!

- Onde está o Padre Fredo quando mais necessitamos de sua presença?

- Convoquei-o para exorcizar sua senhora, no seu último ataque. Após o ocorrido, o Padre fugiu.
Mais gritos de desesperos vindos da torre leste, perto dos aposentos do rei.

- Majestade, mais de 100 homens estão à espera no salão principal no palácio, esperando para lutar pelo senhor, pelo Reino. Por favor, imploro que o senhor também deva honrá-los.

- Edward, nada mais pode ser feito pela minha esposa... quero apenas que me retire daqui e que avise aos guardas que poupem-na de uma morte dolorosa, mesmo que a pobrezinha já esteja morta. Que satã abandone-a de vez e se ponha em seu devido lugar, que é no mais profundo inferno.

Todas as luzes à vela do palácio se apagam de repente.

- Majestade! Majestade! Onde estás? – Gritou desesperado Edward.

- Estou bem atrás de ti. Segure minha mão para me guiar. 

- Sua carruagem provavelmente está à sua espera, lá fora. Terei de ficar aqui para controlar sua senhora. Li que o tipo de entidade que a possuiu apenas escapa dos ambientes pela porta da frente, e se esta for aberta pelo dono da residência. Em hipótese alguma, senhor, abra a porta. Deixe que um soldado abra-a para vossa Majestade.

- Minha senhora está morta, Edward. Irás comigo, pois é o único homem cuja confiança é inacabada.

- Mais soldados virão para impedir a... criatura... sair do palácio e...

O pronunciamento de Edward fora interrompido por barulhentos passos vindos da escadaria que dava acesso aos aposentos.

- Ela está aqui, na torre!

- O que faremos, Edward? O que faremos? – O Rei finalmente começou a se desesperar.

 - Teremos de nos aproveitar da escuridão. Espero que a criatura não consiga enxergar no escuro.

- Demonstre respeite pela sua Rainha, Edward! Ela não é um monstro!

- Senhor, perdoe-me, mas eu devo lhe pedir para falar mais baixo.

- Perdoe-me, Edward. Não sei mais o que fazer.

- Não se preocupe, senhor. Agora, devemos ir. Escutei algo que pareceu ser a respiração da Rainha, ou do ser que agora habita seu corpo.

Porém, o homem de coroa reluzente se opôs:

- Não façamos isto! Morreremos!

- Ela não nos verá. – Contradisse Edward.

- Como tem certeza?

- Não tenho, Majestade. Agora, devemos ir!

Aproveitando-se da completa falta de luz, Edward decidiu colocar seu plano suicida em ação. Ao abrir breve e lentamente a porta dos aposentos reais, percebeu a sombra de uma pessoa andando pelo teto, usando além das pernas os braços, como um quadrúpede. A movimentação dessa criatura variava de lenta para rápida.

- Ela está no teto, senhor. Temos a chance de correr até a entrada da torre e seguir para o saguão principal do castelo.

- Tudo bem.

Assim, os dois homens, cuidadosamente, caminharam até o início (ou término, para quem sobe) da escada e correram. Enquanto corriam, escutavam a criatura com seus passos de aranha segui-los e emitir um perturbador ruído enquanto o fazia. Por sorte, Edward e o Rei conseguiram ser mais rápidos, chegando ao fim da escadaria e sumindo na escuridão, aos olhos da besta.

- O que faremos, então?

- Não fale, majestade!

Mas era tarde. Um vulto extremamente rápido passou por entre os homens e, numa fracção de segundos, capturou um dos dois.

- MAJESTADE!

- AH, MEU DEUS!

- MAJESTADE, NÃO FIQUE AÍ! FUJA! SAIA DO...

 O mandamento de Edward fora interrompido quando sua cabeça, arremessada contra uma parede do castelo, tornou-se uma mera pasta acumulada de miolos e sangue. A rainha possuída aproveitou aquela carne fresca que ainda se encontrava em seus braços e começou a devorá-la.

 O Rei, por outro lado, não sabia para onde ir, até avistar tochas vindas de um corredor próximo: eram os últimos seguranças do castelo, a maioria estava morta (O Rei pisava em seus restos espelhados pelo chão sem perceber, por causa do choque) ou teria guiado os habitantes reino para longe. Um dos guardas perguntou ao Rei abatido:

- Majestade, ficarei com o senhor até a situação amenizar. Os guardas deverão recapturar sua esposa viva, eu sei disso.

- Não! Mate aquele monstro de uma vez por todas! – Ordenou o Rei. – Minha mulher já está morta. Se a criatura escapar deste castelo, irá atrás dos cidadãos, mesmo que estes já estejam longe.

 Obedecendo às ordens do Rei, os seguranças do castelo foram à caça da criatura que, totalmente solta e descontrolava, liquidava qualquer um que tentasse lhe deferir um golpe de espada.

 De repente, um pedaço da lâmina da arma de um guarda morto em ação, jogado pela Rainha, voou em direção ao Rei, que fora salvo pelo segurança que ficara para defendê-lo. O objeto, porém, perfurou o crânio do bravo homem, que caiu como a um boneco de pano no chão, formando uma poça de sangue ao seu redor.

 O Rei, sozinho, sem esperanças, esperava a sua vez; porém, esta não veio. A criatura havia sumido! Seria impossível ter saído do castelo, pois não havia uma saída ou entrada aberta. Totalmente decidido do que fazer, o homem apanhou as tochas caídas dos guardas e começou a incendiar as longas e avermelhadas cortinas do saguão principal de seu castelo, para por um fim naquele pesadelo, de uma vez por todas. Em menos de 5 minutos, todo o saguão estava em chamas. O fogo se espalharia por todos os andares e torres, esperava o Rei. O homem, que jamais esperou que tamanha tragédia fosse um dia acontecer, outra vez, com uma mulher de sua família (apesar de no primeiro acontecimento ter havido uma "cura"), despediu-se da sua esposa em silêncio e saiu do castelo, lutando para não olhar para trás.

 Antes de colocar um pé para fora da porta da frente da residência, que abriu antes de verificar se a temida criatura estava por perto ou não, o Rei sentiu algo encostar seu ombro direito e puxá-lo com tanta força que quase o derrubou no chão. Ao virar-se para ver o que estava acontecendo, deparou-se com horripilante figura feminina, de pele cinzenta e ferida, olhos fundos e vermelhos, cabelos desarrumados. O Rei quis gritar, mas não conseguiu, além de ficar paralisado, com os olhos esbugalhados, centrados naquela visão aterradora.

- Ainda não tive a chance de me despedir, querido. – Disse a criatura, decapitando o Rei com uma única mordida, cuspindo sua cabeça para o lado e jogando o resto de seu corpo para as chamas que tomavam conta do castelo.

- Adeus! – Continuou. – Sou grata por manter a porta aberta, para mim.


 Sentindo o cheiro de camponeses, plebeus e soldados em fuga, a criatura resolveu sair para se divertir com todos e, após o entretenimento, destruir e aterrorizar outras vidas e tomar novos reinos.

domingo, 23 de outubro de 2016

Conto: Inspiração dos Infernos

A história de hoje trata-se de um triste fato que aconteceu comigo, há muitos anos. Naquela época, eu ainda era um jovem músico que tentava obter sucesso compondo melodias românticas de piano. Porém, minha criatividade se encontrava desprovida de inspiração e isso já fazia um perturbador longo tempo.

 Eu realmente não sabia mais o que fazer. Nada mais podia me inspirar, nem mesmo uma tarde de leitura deitado sob a grama do jardim de minha propriedade, tampouco conversas e trocas de ideias com meus professores de música, muito menos observar o pôr-do-sol ao lado de uma pessoa amada. Nada mais me inspirava e eu precisava apresentar uma música nova para os clérigos no dia seguinte.

- Mestre Antônio, não se esqueça da nossa música de amanhã! Estou ansioso para ouvir e tenho certeza que o Bispo também. – Me cobrou um dos membros da Igreja, quando me viu caminhando pela cidade.

  Quando voltei para casa, depois de mais um dia de trabalho mal sucedido, desabei no choro de tamanho desespero. Não queria falar com ninguém e também não aceitei ajuda de meus familiares. Eu precisava pensar em uma bendita música nova e meu cérebro preguiçoso não estava colaborando para isso.

 Tranquei-me no quarto, sentei-me em frente ao único piano que me pertencia daquela casa, de tamanho adequado para ocupar o lugar de uma mesa de escrivaninha, e comecei a tocar. Toquei e toquei e toquei e toquei até meus dedos começarem a cansar; Jurei tê-los visto mancharem as teclas de marfim de sangue, mas aquilo parecia minha mente cansada me pregando peças. Quando bati fortemente os dedos nas teclas, sinalizando minha desistência, pensei a pior coisa que poderia pensar em toda a minha vida: “eu faria qualquer coisa para compor uma melodia nova!”. Isso se aplica a possíveis acordos com entidades paranormais supremas, tanto boas quanto ruins. 

 Quando parei de tocar, ou, pelo menos, tentar, cochilei diante do piano. A noite já havia caído, mais silenciosa que um túmulo, mais gelada que um cadáver, mais desinteressante ou desinteressada que minha criatividade. Eu havia deixado a janela do quarto aberta, mas estava com muita de preguiça de me levantar para fechar.

 Fui despertado, então, por uma peculiaridade sonora que, desde o primeiro momento que eu ouvi, me encantou. Aquele som, que eu não sabia de onde estava vindo, estava simplesmente pairando sob meu quarto, como uma um incenso que transmite tranquilidade ao ambiente. No caso daquela belíssima melodia que ecoava em minhas paredes, aquilo me fazia extremamente bem. Não era uma música alta, nem mesmo baixa, mas um som em perfeita harmonia com o lugar e principalmente comigo. Aquela música, de melodia que eu acabara de decifrar como romântica, que começava com o acorde de lá menor, literalmente me acordou, fazendo-me compor imediatamente a música que eu estava devendo para o bispo.

 Depois de finalizada no papel e no lápis, fui testar o resultado no piano. Estalei os dedos, endireitei minha postura e comecei a tocar. O resultado nunca me deixou tão satisfeito e emocionado. Eu finalmente criara algo de respeito! O som não mais pairava no ar, mas na minha cabeça e consequentemente no meu piano.

 Eu estava tão extasiado de felicidade que mal notei um morcego morto que estava caído na minha janela. Pobre animal, mas aquele não era o momento de me preocupar com mamíferos mortos. Eu não conseguia dormir naquela noite, de tão feliz e ansioso para o dia seguinte. Passei a noite tocando a música para mim. Felizmente, as paredes do meu quarto eram revestidas com uma madeira poderosa que impossibilitava o som passar para os outros cômodos da casa. Assim, ninguém mais além de mim poderia escutar a música. Isso é ótimo, pois eu odiaria que alguém escutasse a música antes dos membros do Clero. Queria surpreender a todos! Mal sabia eu o quão importante foi não ter deixado ninguém da minha família escutar a música.

 Quando o dia finalmente raiou, vi a luz do Sol iluminando meu quarto e revelar para mim uma estranha visão: vários insetos mortos no meu chão, como formigas, mariposas, e mosquitos. Não lembro de ter matado nenhum inseto durante a madrugada, nem mesmo da presença desses bichos no meu quarto. Decidi ignorar tal acontecimento e descer para tomar café da manhã e finalmente sair.

 Saindo de casa com os papéis da partitura da música em mãos, rumei à catedral, onde o Bispo e os demais clérigos me esperavam. Chegando lá, cumprimentei a todos e levaram-me para um salão espaçoso, repleto de janelas com vitrais franceses, poltronas para o público sentar e um palco para a orquestra se apresentar, com uma gigantesca cruz de madeira presa à parede que parecia “abençoar” os músicos e a plateia. Nessa ocasião, eu seria o único músico de minha “orquestra”. Lá estava um piano todo revestido de mármore branco, um dos mais bonitos que já vi em toda minha vida. Sentei-me diante do instrumento musical de minha especialidade, testei sua afinidade, coloquei a partitura no meu campo de visão e esperei o Bispo sentar em sua poltrona especial no meio do salão para eu poder começar a expor minha obra-prima.

 Quando finalmente chegou a hora, senti-me confiante demais e decidi fechar os olhos para executar minha música. Esteva fazendo tudo conforme o planejado, da melhor maneira possível. Não mais podia escutar nada no mundo lá fora, a não ser minha melodia que ecoava naquele salão. As janelas estavam fechadas, o que permitia uma acústica ainda melhor.

 Ao finalizar minha obra de arte, abri os olhos esperando me deparar com os olhares de encanto do meu público religioso. Porém, o que vi vai além dos limites do horror que um ser humano possa ver. O bispo e os demais clérigos estavam, de fato, com os olhos bem abertos; porém, suas cabeças estavam caídas para trás, seus corpos imóveis, suas expressões amedrontadas, como se algo tivesse assustado a todos de maneira inesperada, o que de fato a morte fez.

 Eu estava em choque. Não conseguia me levantar da cadeira, nem mesmo pensar no que poderia ter causado aquele genocídio, mesmo sabendo a resposta imediatamente, ainda mais quando olhei a enorme cruz de madeira pregada a parece e perceber que o objeto estava completamente invertido. Naquele momento, meu coração pulou, minha mente pesou e não houve mais nada que eu pudesse fazer além de levar minhas mãos à cabeça e gritar. Agora tudo fazia sentido... o morcego, os insetos, o fato da música surgir misteriosamente na minha cabeça... tudo isso havia sido obra do diabo!

 Peguei aquela partitura amaldiçoada pelo diabo e decidi rasgar. Quando puxei os papéis com violência, fazendo as folhas ficarem amassadas, senti uma dor insuportável em meu corpo. A situação só fazia piorar cada vez mais. Para sair da sala, tive que passar pelos cadáveres do clero de minha cidade. Não mais havia representantes da Igreja naquele local. Eu havia condenado a todos com aquela maldita música.

 Ao tentar queimar aqueles malditos papéis da partitura na lareira do salão, senti novamente aquela dor agonizante e um terrível calor que eu jamais havia sentido. Só depois da segunda tentativa de destruir de vez aquela música me dei conta de que eu era aquilo, ou aquilo era eu. Minha alma estava presa naquele pedaço amaldiçoado de arte. Depois daquela tragédia, nunca mais me dediquei à música, até pelo fato de eu ter sido condenado e preso por ser principal suspeito da morte de todos aqueles homens de fé. Os papéis amaldiçoados permanecem no meu quarto, nunca tive chance de me livrar deles e de mim.


 No meu solitário e imundo cárcere, escrevo para vocês, com muita amargura e arrependimento, a vez em que eu me inspirei no próprio diabo. Só espero que ninguém leia essa história em voz alta, pois não sei se todas as minhas escrituras quando escutadas ocasionam mortes medonhas. Leiam em silêncio.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Conto - A Divina Carona

No tranquilo entardecer, numa das mais vazias e silenciosas estradas na região oeste do Estado, onde normalmente há apenas o tráfego de alguns caminhões de carga ou transportes intermunicipais, o caminhoneiro Joshua, mais conhecido nas redondezas pelo seu eficiente trabalho e sua religiosidade, estava prestes a fazer uma entrega a menos de 88 km.

 Não sabia o velho trabalhador, que atualmente possuía dificuldades ao dirigir por sempre imprensar a enorme pança no volante do caminhão, que estava prestes a passar por uma experiência no mínimo desagradável.

 Poucos metros do transporte de Joshua, estava sentado em uma das paradas de ônibus intermunicipais um homem pálido, de postura ereta, portando uma peculiar maleta e trajando um terno negro e óculos “fundo de garrafa”, o que simbolizava um ato grau de miopia sofrida pelo pobre diabo. Tal indivíduo, que aguardava atentamente pelo seu transporte, chamava-se Heitor.

 Ao escutar de longe um possível ônibus intermunicipal vindo em sua direção, Heitor levantou-se do acento para avistar o transporte, sentindo-se aliviado pelo fato de já estar escurecendo naquela estrada silenciosamente vazia. Percebendo que o barulho de motor se tratava de um mero caminhão de carga, fez um gesto com o dedo polegar direito, anunciando carona. Afinal, além de acreditar que ainda existe a quase extinta boa vontade das pessoas, Heitor não queria permanecer naquele lugar deserto sozinho. 

Percebendo, por trás do chaveiro de crucifixo pendurado ao espelho retrovisor fixado ao vidro frontal do veículo, aquele sinal de carona feito por um completo desconhecido, Joshua pareceu hesitar primeiramente, mas logo parou o caminhão para atender ao pedido, parecendo não se importar com possíveis riscos.

 Levantando a janela automática do banco de carona, o velho caminhoneiro obeso esperou que o jovem pálido e de aparência enferma pudesse se aproximar.

- Boa tarde! – Cumprimentou Heitor, ao chegar mais perto do caminhão.

- Bom final de tarde, na verdade. – Corrigiu Joshua, dando um sorriso amigável para o estranho. – Deseja uma carona, meu irmão? Nenhum filho de Deus merece ficar sozinho numa estrada como essa?

- Ahh, sim! Por favor. – Respondeu Heitor, sem saber tão bem o que falar. – Estou indo para a próxima estação de ônibus. Acho que fica a uns 40 km daqui. 

Surpreso, Joshua respondeu:

- Ótimo! Preciso entregar essa carga pouco depois da estação. Pode subir, irmão!

Heitor, então, lentamente subiu no caminhão e se acomodou no banco de carona do caminhão. O rapaz percebeu acima do painel do carro inúmeras imagens de santos e utensílios religiosos, sendo rapidamente interrompido com a enorme mão de Joshua sendo estendida na sua frente.

- Meu nome é Joshua, por sinal.

- Heitor. – Respondeu o rapaz, apertando a mão do motorista.

- É um prazer conhece-lo, Heitor. O que fazia um rapaz tão jovem e bem vestido na beira da estrada, sem mais ninguém ao redor?

 Não sabendo o que responder primeiramente, Heitor fechou rapidamente os olhos para procurar encaixar as palavras na mente e finalmente respondeu:

- Bom, eu estava esperando um ônibus que pudesse me levar para a estação. Preciso estar amanhã de manhã na capital.

- Negócios, lazer ou família? – Perguntou o caminhoneiro interessado.

- Funeral. – Respondeu Heitor, olhando atentamente para as imagens religiosas a sua frente.

 Joshua desvia o olhar da estrada e olha espantado para o seu convidado:

- Eu sinto muitíssimo! Alguém da sua família?

- Na verdade, um amigo meu de longa data. – Respondeu o rapaz com a voz um tanto trêmula. – Acho que talvez o único amigo que tive na vida. Nunca fui de me socializar com as pessoas, pra falar a verdade.

- Acho que isso explica suas roupas pretas e seu semblante tão triste, irmão. – Falou Joshua, como se estivesse consolando Heitor.

– Creio que seu amigo agora está com Deus. Ele sabe muito bem o que faz, acredite em mim.

 Heitor realmente não se sentiu bem após aquele comentário extremamente religioso do motorista. Não podia iniciar uma discussão a respeito de religião. Preferiu ficar calado, mas não tirou a expressão de desconforto do rosto. Se o rapaz começasse a falar sobre o que pensa, certamente iria estregar a carona. Heitor jamais fora uma pessoa amigável, tampouco compreensiva com as outras.

 Cansado do silêncio, e com extrema vontade de comentar o possível fanatismo religioso de seu motorista, Heitor começou:

– Não pude deixar de notar que o senhor é bastante religioso...

 Não tirando os olhos da estrada, Joshua percebeu um certo desconforto na voz de seu carona ao começar a comentar sobre sua religiosidade.

- De fato, meu filho. Eu vivo para acreditar e servir ao Senhor. Devo fazer sempre fazer aquilo que Ele deseja e, com certeza, faria, inclusive não deixar um desconhecido sozinho numa estrada à noite. – Alegou o caminhoneiro.

 Heitor refletiu a respeito de o caminhoneiro fazer tudo que sua entidade religiosa suprema desejaria ou faria. Pondo sua maleta sobre os joelhos e melhor se acomodando no banco de carona, o rapaz decidiu debater com seu motorista “salvador”.

- Então... quer dizer que seu Deus daria uma carona para qualquer desconhecido na estrada?

- Como assim, meu jovem? – Riu Joshua, percebendo depois que não havia expressão de brincadeira no olhar de Heitor.

 O motorista pigarreou e procurou responder:

- Pois bem, tenho certeza que o Senhor teria a decência... quero dizer... a compaixão de não deixar um filho Seu sozinho em um lugar abandonado. Correndo riscos de ser assaltado ou, que o Senhor nos livre, assassinado.

 Heitor deu um leve sorriso no canto esquerdo da boca, como se estivesse debochando da argumentação que acabara de ouvir, o que não deixou Joshua confortável.

- Minha fé o incomoda, meu rapaz? – Questionou o caminhoneiro, parecendo nervoso.

- Não, é claro que não! – Respondeu o rapaz de preto, que ainda mantinha aquela expressão sarcástica no seu rosto magro. – Só acho engraçado pensar que Deus ajudaria alguém sabendo dos terríveis pecados cometidos por essa pessoa. Eu sei que vocês acreditam que ele pode ver e saber de tudo a respeito de um indivíduo, - Heitor tira a maleta dos joelhos e coloca embaixo do acento – mas, não seria mais prudente Ele deixar que tal pessoa, de acordo com o nível das maldades por ela cometidas, passar por um desafio antes? Como se fosse um julgamento?

 Intrigado com o posicionamento do jovem rapaz, Joshua respondeu:

- Não cabe ao Senhor julgar um de seus filhos, por mais terrível que essa pessoa seja. Sim, o principal papel de Deus é guiar os seus filhos para o bem.

- Um serial killer, ou um pedófilo estuprador não são filhos de Deus, então? Uma pessoa de religião diferente, que são as mais condenadas desde os primórdios da humanidade, não são filhas do Deus a quem elas veneram?

 Joshua sentiu uma peculiar onda de raiva invadir seu consciente. Não queria discutir com o passageiro, mas também não queria sofrer tamanho desaforo dentro do seu próprio caminhão.

- Não foi isso que eu quis dizer! – Irritou-se o caminhoneiro. – Não cabe a Deus julgar esse tipo de gente na Terra. No além da vida, sim, juntamente com o diabo. Cabe a tal alma, porém, construir seu destino pro meio de seus atos. Esta só terá salvação se suas realizações na Terra forem feitas em nome do Senhor. Em nome do Senhor!

 Fez-se uma breve pausa, até Heitor, com frieza na voz, perguntou:

- Matar alguém em nome do seu Deus vai te levar para o céu, então?

 Joshua percebeu a frieza na voz de Heitor naquela pergunta. Até o suor que escorria de sua testa gelou e suas mãos começaram a tremer enquanto seguravam o volante acima da barriga. O caminhoneiro não estava confortável com a presença daquele estranho rapaz no veículo, mesmo acreditando que completar a carona seria a coisa certa a se fazer. Porém, o medo pareceu tomar conta daquela pobre alma que dirigia o caminhão.

- Você não respondeu minha pergunta. – Exclamou Heitor, quebrando o silêncio que lá dentro do transporte se fazia. – Nem mesmo me esclareceu se pessoas de outras religiões também estão condenadas.

- Não, não estão. – Respondeu Joshua, por fim, ainda trêmulo e nervoso.

- Então, somente os assassinos, estupradores, ladrões e pedófilos estão condenados, independente de cor, raça, orientação sexual? – Perguntou Heitor olhando agora atentamente para Joshua.

- Eu acho que sim.

- “Acha que sim”? Você quer dizer que aqueles que fazem isso em nome do Senhor, ou de qualquer Deus, está perdoado, então?

- Só existe um Deus! – Gritou Joshua.

- Me desculpe, senhor. Mas, talvez essa não seja a verdade.

 O caminhoneiro freou bruscamente o veículo, sinalizando que o caroneiro devia sair de lá imediatamente.

- Acho melhor você seguir o seu caminho sozinho.

 Chocado com a atitude de Joshua, Heitor tentou se desculpar, mas o caminhoneiro já havia destravado as portas.

- Desculpe-me por qualquer transtorno. – Disse o rapaz ao sair do veículo, esquecendo lá dentro sua maleta.

 Menos de dois minutos depois, Joshua sentiu um leve arrependimento, que logo após se tornou extremamente forte. Afinal, ele devia fazer o que achava que era certo, independente de tudo. Foi então que ele percebeu que Heitor havia esquecido sua maleta logo abaixo do banco de carona. Usando o utensílio como álibi, o caminhoneiro parou o veículo, na esperança de que o rapaz pudesse correr até lá para buscar sua maleta.

 Percebendo a falta do seu utensílio, assim como o fato do caminhão ter parado a poucos metros de distância, Heitor correu em direção ao veículo para pegar sua maleta, esperando também que Joshua tenha mudado de ideia. A noite já caíra e a estrada esteva mergulhada na escuridão, cuja única iluminação vinha de um poste que estava parado logo acima do transporte de carga do velho caminhoneiro religioso.

 Chegando perto da janela aberta do lado do carona do caminhão, Heitor viu que Joshua segurava a maleta esquecida.

- Oi... eu... esqueci minha maleta. – Começou a falar.

- Acho que percebi. – Respondeu Joshua, entregando o utensílio para o rapaz de preto.

- Muito obrigado. – Agradeceu Heitor, simulando que ia se afastar do veículo.

- Espere um minuto! – Ordenou Joshua. – Tenho uma coisa para você. – Disse, mexendo em um dos bolsos da jaqueta jeans que estava vestindo.

 Curioso com aquilo, Heitor se aproximou do veículo e logo foi surpreendido por uma peculiar fisgada em seu pescoço, fisgada essa ocasionada por um dardo venenoso atirado por Joshua, assim que tirou a mão do bolso.

 Heitor, então, sentiu se engasgar com a própria saliva que agora espumava em sua boca. Suas pernas não mais sustentavam seu corpo. Estavam trêmulas. O rapaz cai no chão e sente a tremedeira se expandir para o seu corpo inteiro, chegando principalmente à cabeça.

 Ao se contorcer na estrada, o rapaz batia forte a cabeça no asfalto, fazendo sair sangue pelas orelhas. Por fim, Heitor tentou dar seu último suspiro antes que seus olhos não mais pudessem enxergar a vida. Suas pupilas dilataram, seu corpo congelou, não havia mais bombeamento de sangue, tampouco atividade cerebral. Joshua ainda estava profundamente arrependido por não ter feito aquilo de uma maneira mais limpa, assim como todos os outros caroneiros que, segundo o velho caminhoneiro, não tinham respeito pelo nome do Senhor e precisavam imediatamente ter a alma julgada por Ele ou pelo Anjo Caído.

 Com dificuldades de sair do caminhão, por conta da sua gordura, Joshua saltou para fora do veículo e arrastou o corpo de Heitor até o compartimento de carga. Abrindo a escotilha, o caminhoneiro lutou para poder encaixar o corpo do rapaz entre os outros pecadores que lá jaziam. Sua carga estava cheia de corpos sem vida que seriam transportados para diferentes universidades de medicina do país. Afinal, Joshua era um caminhoneiro entregador confiável do interior daquele Estado. Mal sabia o povo que o velho obeso que realizava todos os serviços, principalmente em nome do Senhor. 

quarta-feira, 18 de maio de 2016

X-Men: Apocalipse - Crítica

Amor e ódio. Eis os sentimentos mais comuns entre os cinéfilos fãs de histórias em quadrinhos, e suas adaptações para as telonas, em relação à 20th Century Fox. De fato, o estúdio adora matar de amores alguns e de raiva outros com seus filmes baseados em HQs no universo Marvel. As produções do “Quarteto Fantástico” de 2005 e 2007, assim como a nova adaptação lançada ano passado, ”X-Men: O Confronto Final” e os longas-metragens solo do Wolverine, são alguns exemplos de como a Fox pode ser mal vista por muitos, mesmo sendo o estúdio um dos principais responsáveis pela evolução do cinema de entretenimento, iniciando, assim, uma nova era de “filmes de super-heróis” com o primeiro “X-Men”, de 2000. Nem é preciso comentar “X-Men 2”, “Primeira Classe”, “Dias de Um Futuro Esquecido” e “Deadpool” para justificar os momentos de amor pela Fox sentido pelo público. A questão é que o estúdio cinematográfico, mesmo que você o odeie ou ame, foi, de fato, responsável pela super (ou, nesse caso, mutante) disseminação da cultura pop no cinema.

 “X-Men: Apocalipse” é um claro exemplo dessa relação “amor x ódio” dos fãs pela Fox, assim como pelo diretor Bryan Singer, outra figura injustiçada no meio nerd e geek. Haverá quem gostar do filme, da mesma maneira como o longa-metragem terá seus haters. Existem boas razões para gostar ou não do mais novo filme dos Filhos do Átomo, o terceiro do arco “Xavier, Magneto e Mística”, que é finalmente fechado para dar espaço à nova equipe que é apresentada de maneira primorosa.

 Em “X-Men: Apocalipse”, os filhos do átomo enfrentam o mais antigo dos mutantes, En Sabah Nur (Oscar Isacc), conhecido por vários nomes, principalmente Apocalipse. Para impedir que o vilão crie uma nova ordem mundial, construindo sobre a humanidade um mundo melhor, o Professor Charles Xavier (James McAvoy) deverá contar com a ajuda de Mística (Jennifer Lawrence) e da equipe de jovens X-Men para impedir que os humanos sejam destruídos, além de salvar irmãos mutantes, principalmente Magneto (Michael Fassbender), de um falso Deus.

 O filme começa em grande estilo, explicando a origem do vilão En Sabah Nur, o Apocalipse, no antigo Egito, numa sequência de abertura bem dirigida e diferente de qualquer outra cena mostrada nos filmes dos mutantes. O longa, então, segue para 1983, apresentando novos personagens e seguindo a premissa apresentada no início, envolvendo o primeiro mutante e o seu retorno que trará para a humanidade um fim apocalíptico. Quanto ao roteiro, furos e situações no mínimo forçadas não foram evitadas, o que pode não ser digerido por alguns fãs. Porém, em matéria de enredo, o filme acerta em cheio adaptando a história de um dos vilões mais poderosos do universo X-Men, mesmo com algumas alterações, principalmente em relação ao visual (altamente criticado no início e com razão), mas nenhuma distorção quanto ao personagem no quesito de história e nível de perigo.
Oscar Isaac, intérprete de Em Sabah Nur, consegue disfarçar o sofrível visual do vilão interpretando-o de maneira convincente. Talvez um problema que muita gente perceba em Apocalipse seja a motivação não tão clara do antagonista, que acaba criando situações previsíveis. Além do personagem título, o filme também conta na categoria de vilões com seus 4 cavaleiros. Magneto é mais uma vez interpretado pelo brilhante Michael Fassbender e, como esperado, é o personagem antagonista que mais chama atenção em todo o filme, pelo fato deste ter uma motivação que, mesmo distorcendo de certa forma da natureza do personagem, é compreensível. Tempestade e Anjo, respectivamente interpretados por Alexandra Shipp e Ben Hardy parecem estar apenas marcando presença; a Tempestade, porém, consegue ter seu momento, mesmo sendo um pouco tarde, diferente do Anjo que praticamente acrescenta em nada à trama e não convence. Psylocke, interpretada por Olivia Munn, é uma personagem de poucas palavras e sem motivações, mas consegue surpreender tanto no visual quanto nas cenas de ação. Talvez o excesso de personagens tenha causado essa participação tão reduzida, quase que completamente inútil, de três dos quatro cavaleiros de Apocalipse.

 Ainda falando sobre os personagens, temos a volta de James McAvoy como o Professor X, incrivelmente mais parecido com Patrick Stewart, tanto na atuação quanto na caracterização, em determinado momento do filme, Jennifer Lawrence como Mística, que convence ao explicar o verdadeiro motivo para não aparecer muito sob seu verdadeiro eu, Nicholas Hoult (Fera) e Lucas Till (Destrutor). A nova equipe é formada pelos ótimos talentos de Sophie Turner, que rouba a cena interpretando a jovem Jean Grey, sendo uma das melhores personagens do filme, Tye Sheridan, que faz o jovem e ingênuo Ciclope, cuja participação está começando a ficar a altura do clássico personagem, Kodi Smit-McPhee, o incrível (de fato, mais incrível do que esperava) Noturno e aquele personagem que todos estavam esperando desde o último filme, para dar mais um show de descontração e cenas memoráveis, o Mercúrio do excelente Evan Peters. Nem todos, porém, possuem o mesmo brilho; a Jubileu, interpretada por Lana Condor, está mais para uma figurante fazendo uma mera participação especial, sendo completamente descartada da trama, infelizmente.

 Em matéria de cenas de ação e efeitos visuais, o filme acerta em cheio na primeira, mas escorrega na segunda. O CGI é necessário, isso é um fato, mas seu excesso acaba por tornar algumas cenas confusas, ou animadas tal quais efeitos de jogos.  Porém, isso não impede que a ação do filme seja empolgante.

  Recheado de fan services, para a alegria de alguns, referências e elementos que fãs dos mutantes da Marvel e do bom cinema de ação gostam de ver nas telas, o filme se divide entre erros e acertos. No geral, “X-Men: Apocalipse” não é melhor que os antecessores e nem mesmo inferior, apenas possui erros que não o impede de ser mais um grande filme da série que foi reformulada em 2011 com “Primeira Classe”. Mas, claro que haverá quem associe a frase de Jean Grey, a respeito de “O Retorno de Jedi”, ao novo filme: “O terceiro sempre é o pior”.

Filme: X-Men: Apocalipse (X-Men: Apocalypse)

Direção: Bryan Singer

Duração: 144 minutos

Censura: 12 anos

Elenco: Michael Fassbender, Jennifer Lawrence, James McAvoy, Nicholas Hoult, Oscar Isaac, entre outros.

Nota: 4/5

terça-feira, 19 de abril de 2016

Mogli - O Menino Lobo - Crítica

Na época que fora anunciado, a adaptação que mistura live-action e efeitos computadorizados de Mogli – O Menino Lobo (The Jungle Book) não chamou atenção, ainda mais depois dos decepcionantes “Oz – Mágico e Poderoso” e “Malévola”, ambos também da Disney. Ano passado, com “Cinderela”, uma gota de esperança no filme de Mogli ressurgiu; e, quando lançado o primeiro trailer, o belíssimo visual do longa-metragem encantou e animou a todos.

Adaptado do livro de Rudyard Kipling e da animação de 1967, última com Walt Disney na produção (que veio a falecer antes do lançamento), o filme conta a história do órfão Mogli (Neel Sethi), “filhote de homem” criado pelos lobos, que se encontra em perigo quando é ameaçado pelo tigre Shere Khan (voz de Idris Elba), que odeia os humanos e considera o garoto um perigo para a selva. Cabe então à pantera Bagheera (voz de Bem Kingsley) escoltar Mogli até a aldeia dos homens, onde acredita que o menino ficará seguro. Porém, Mogli encontra o necessário para viver no caminho.

 Assim como na animação de 1967, o filme não tem medo em misturar os encantos e fofuras de uma produção da casa do Mickey Mouse com situações de perigo. A sensação de perseguição, assim como a violência no mundo animal, é perfeitamente explorada nesse novo longa-metragem, mas sem tirar o encanto nostálgico que fará muitos adultos relembrarem os bons tempos de VHS. Talvez, algumas passagens de alívio cômico e personagens que foram reduzidos ou cortados no filme façam falta para algumas pessoas que cresceram assistindo ao clássico Disney. Porém, o filme acerta em cheio ao abortar um elemento fiel à obra original de Kipling que é o funcionamento da vida selvagem, focando no sistema organizacional e até mesmo em “golpes de poder”.

 Apesar de não conseguir escapar de típicos clichês, o roteiro se mostra bem escrito e perfeitamente desenvolvido, principalmente quando se trata dos personagens; não estamos falando de suas caracterizações altamente realistas, criadas a partir da Weta Digital e da Pixar Animation Studios, mas de seus papeis desempenhados na trama. A alcateia dos lobos, chefiada por Akela (voz de Giancarlo Esposito), tem um grande destaque no desenrolar do filme, principalmente a mãe adotiva de Mogli, a loba Raksha, cuja belíssima voz de Lupita Nyong’o transmite uma incrível tranquilidade e responsabilidade materna. O urso Baloo, cuja caracterização não teria sido a mesma se não fosse a hilária dublagem de Bill Murray, diverte e é o principal ícone do filme que transmite a tão adorada sensação de nostalgia. A cobra Kaa, que tem a hipnotizante voz de Scarlett Johansson, aparece pouco, mas em uma ótima sequência digna de uma participação significativa da personagem. O gigantesco e bizarro Rei Louie, dublado pelo talentoso Christophen Walken, parece mais “monstruoso” que na animação, mas também dá ao público uma calorosa dose de nostalgia, além de ser um dos personagens mais bem construídos tecnologicamente. Falando em talento, não podemos deixar de fora as grandes vozes de Idris Elba, que desempenha o perverso tigre Shere Khan, e Bem Kingsley, que empresta sua voz ao mal humorado e protetor Bagheera. Não podemos esquecer também do jovem Neel Sethi, que é bem simpático diante das câmeras e consegue segurar o filme, sendo o único personagem humano.


 No mais, Mogli – O Menino Lobo possui elementos primordiais, como uma belíssima fotografia, trilha sonora que irá deixar muitos com os olhos cheios d’água, efeitos visuais com uma realidade impressionante e somente o necessário para que a Disney realizasse um de seus trabalhos mais grandiosos.

Filme: Mogli - O Menino Lobo (The Jungle Book)

Direção: Jon Favreau

Duração: 105 minutos

Censura: 10 anos

Elenco: Nell Sethi, Bill Murray, Ben Kingsley, Lupita Nyong'o, Idris Elba, entre outros.

Nota: 9 de 10

terça-feira, 29 de março de 2016

Batman Vs Superman: A Origem da Justiça - Crítica

 SEM SPOILERS

 Em 2013, o cineasta Zack Snyder, responsável  por duas grande adaptações de quadrinhos para o cinema, “300” e “Watchmen”, nos mostrou que o Universo Cinematográfico DC Comics poderia subir de acordo com os alcance dos voos do Superman, em “Homem de Aço”, mesmo devido algumas quedas cometidas pelo roteiro do longa-metragem. Agora, em “Batman V Superman: A Origem da Justiça”, a altura do voo é inegável, mesmo contendo algumas turbulências, mas que não interferem no controle do filme.

 Todos sabem que o universo DC das telonas será bem diferente da Marvel, devido às temáticas mais “maduras” abordadas nos filmes, o tom sombrio e a ausência de humor irreverente (podem ficar tranquilos que Batman Vs Superman contém humor, mas, ainda vou chegar lá), e é claro que a ideia de começar uma série de filmes baseados nos personagens da maior concorrente da companhia dos heróis de Stan Lee iria deixar os fãs de “filmes de super-heróis” preocupados e até mesmo sem fé. A recepção mista de “Homem de Aço” dividiu opiniões a respeito do possível sucesso ou fracasso da DC Comics no cinema. Tal incerteza aumentou ainda mais quando Bem Affleck fora escalado para interpretar o Homem Morcego nas telonas.

 Porém, estamos falando de Superman versus Batman; como diz Lex Luthor (Jesse Einsenberg), a maior batalha de gladiadores da história, Deus versus Homem, dia versus noite. As mitologias do Filho de Krypton e do Morcego de Gotham são as mais importantes e influentes das histórias em quadrinhos. Talvez, o primeiro heróis de todos nós tenha sido o Superman, devido ao seu tão famoso símbolo, capa vermelha e simplesmente ao nome “super”; e, talvez, nossa primeira paixão por vilões tenha surgido nas HQs, desenhos animados, ou séries de TV do Batman. Antes de assistir Batman Vs Superman, questionava se gostaria do filme, por ter os dois heróis mais importantes da cultura pop, mesmo que fosse ruim. Devo dizer que adorei mesmo o filme não sendo ruim. Muito pelo contrário, na verdade, pois o novo longa-metragem de Zack Snyder era o que a DC estava realmente precisando para ganhar o tão merecido destaque no cinema.

 Dirigido de forma competente e até mesmo poética, Batman Vs Superman começa em grande estilo, mostrando um importante acontecimento na vida de Bruce Wayne (Affleck) e seguindo para os acontecimentos em Metrópolis, em “Homem de Aço”. Percebendo a ameaça do alienígena de Krypton, Bruce se opõe contra ele e descobre uma vantagem quando cientistas descobrem um resíduo mineral do Planeta natal do Superman capaz de enfraquecer suas células. O grande problema é que tal material já está nas mãos do bilionário excêntrico Lex Luthor (Einsenberg) e, para completar a situação do Homem Morcego, o tal alienígena de Krypton descobre suas atividades justiceiras contra criminosos de Gotham, considerando-as brutais. O enredo do filme se estende muito mais a isso tudo, abordando temas políticos, religiosos, sociais e, o mais importante, temas presentes em duas clássicas séries de HQ, cujos nomes não mencionarei, sendo uma do Batman e outra do Superman. Em resumo, a história principal do filme é dividida em dois enredos: a primeira, envolvendo Bruce Wayne e sua busca pelo material kryptoniano que está nas mãos de Lex Luthor, a fim de fazer o Superman, que causou tanta destruição e caos desde a batalha de Metrópolis (o longa possui uma incrível sequência de ação que mostra a visão de Wayne sobre a destruição da cidade, no primeiro filme), sangrar, e o enredo que envolve o confronto político-ideológico a respeito da confiança do governo e da população no herói de capas e botas vermelhas.

 Talvez, o filme esteja originando opiniões mistas a respeito da crítica especializada por ser um total aglomerado de fanservices e referências de HQs, além da história complexa demais para ser introduzida em apenas um longa-metragem. Digo, como fã de longa data, não apenas da DC Comics, mas de filmes do gênero “super-heróis”, que a produção de Batman Vs Superman esteve mais do que certa em fazer um filme totalmente para os fãs. Agradar a crítica é, na maioria das vezes, o objetivo principal de produções cinematográficas que adaptam um livro, histórias em quadrinhos, games e outras mídias; agora, fazer um filme para agradar os fãs, pouco se importando com a opinião do pessoal frustrado que não passou na faculdade de cinema e resolveu se dedicar a “especialização” de apontar os maiores erros e mínimos acertos em produções (quis dizer, crítico cinematográfico), consegue ser um trabalho deveras arriscado. Em Batman Vs Superman, podemos identificar esses “presentes” que a Warner/DC resolver deixar para o público, que vai de cenas idênticas, assim como diálogos, ao dos quadrinhos, um sensacional momento de tensão envolvendo Superman e Lex Luthor, cenas de ação dignas, uma fotografia que lembra clássicos momentos de HQs e animações da DC, entre outras coisas que fazem do longa-metragem um filme feito totalmente para fãs. Sim, se Zck Snyder conseguiu captar a essência de Watchmen, transformando a clássica graphic novel numa das melhores adaptações cinematográficas de todos os tempos, o cineasta repete a dose no segundo filme do universo DC cinematográfico.

 Lógico que o filme tem seus erros, como o fato de realmente ter muita história em apenas um longa-metragem, o que não chega a atrapalhar. Porém, o filme, em alguns momentos, pode parecer monótono e confuso para quem não simpatiza com histórias em quadrinhos animações da DC Comics. Até mesmo alguns fãs que não sabem distinguir adaptação de colagem da HQ para o cinema podem reclamar de algumas mudanças de personagens e situações presentes no filme; esse tipo de público insatisfeito com tudo e todos que consegue ficar satisfeito com absolutamente nada e, infelizmente, ajuda a criar a tão famosa geração de haters. Talvez, outro grande defeito do filme seja o 3D, que nada acrescenta, a não ser na cena inicial, durante os créditos de abertura. Nem criticarei o excesso de CGI, pois é compreensível que haja tanto, principalmente durante a batalha final entre a Trindade (Mulher-Maravilha, Superman e Batman) contra Apocalypse.

 E por falar em Trindade, devo começar os comentários sobre alguns dos (muitos) personagens do filme. Primeiramente, como muitos já devem saber, quem rouba a cena é Gal Gadot, interpretando, mesmo de maneira bem breve, mas que não conta apenas como uma simples participação especial, a amazona Diana Prince, a Mulher-Maravilha que deixou todo mundo de queixo caído e que gerou uma explosão de aplausos durante as duas sessões que assisti. Gadot empresta uma personalidade forte e inteligente para Diana, não necessitando dos já batidos apelos “sexuais” para que a personagem chame atenção.  Outro personagem que chamou bastante minha atenção foi Lex Luthor, interpretado pelo animadinho Jesse Einsenberg, que mais parecia uma mistura de Conringa e Charada do que o clássico inimigo do Superman. Porém, a alteração da personalidade do Lex Luthor consegue transformá-lo em um bom vilão e, principalmente, na pela chave para o combate entre Batman e Superman. O filme, por ser sombrio e sério demais, também precisava de um antagonista que fosse “carismático” e, ao mesmo tempo, perigoso e é isso que acontece com o Luthor de Einsenberg. E outro grande destaque do filme é, com certeza, Bem Affleck! Sim, o cara que desgraçou o Homem Sem Medo no cinema acabou criando uma das melhores representações do Homem Morcego na sétima arte. Affleck tem postura, falta de carisma (quando está na pele do herói), porte físico e, diferente dos demais atores que encarnaram o Morcego de Gotham nos cinemas, por conta da roupa pesada, movimentos do Batman. Henry Cavill, apesar da forçada “cara de mau” em algumas cenas, consegue transmitir a autoridade épica de um bom Superman, lembrando muito Christopher Reeve (esse sim o verdadeiro Superman da sétima arte) e, diversas cenas, tanto como Clark Kent quanto o herói alienígena de capa vermelha. Outra grande novidade no elenco é o cultuado ator britânico Jeremy Irons, que interpreta de maneira excelente e sábia o igualmente britânico mordomo Alfred Pennyworth.


 Concluíndo, Zack Snyder, David S. Goyer e Christopher Nolan entregaram um filme no estilo “ame-o ou deixe-o”. Provavelmente, grande parte da crítica especializada, além do público que não costuma manter contato com a mitologia da DC Comics, não irá se simpatizar com o filme, devido a complexidade da história que é mais atraente para quem gosta ou conhece o universo dos quadrinhos da DC; Mas, obviamente chamará atenção pela belíssima fotografia, assim como pela genial trilha sonora de Hans Zimmer e Junkie XL e os efeitos visuais. No mais, Batman Vs Superman: A Origem da Justiça, não é apenas um filme dedicado especialmente para os fãs, mas a prova definitiva de que a DC Comics vem com tudo para expandir seu império também nos cinemas. 

Filme: Batman Vs Superman: A Origem da Justiça (Batman V Superman: Dawn Of Justice)

Direção: Zack Snyder

Duração: 151 minutos

Censura: 12 anos

Nota: 9 de 10