Nunca pensei que
Ernesto, o empregado que trabalhou mais tempo em minha residência, desde a
época em que meu avô mandava na propriedade, pudesse fazer o que fez. Sempre fora
um bom homem, gentil, calmo, que jamais alguém o julgaria por algum crime ou
pecado, o velho Ernie.
O único defeito do meu antigo empregado
tornou-se a causa da sua repentina loucura e obsessão por algo que não mais
vejo diariamente. Ernie havia nascido sem o olho direito e sempre quis poder enxergar o mundo com os dois aparelhos de visão.
Claro que, com o tempo, a pele tomou conta do lugar onde teria um olho; porém,
ainda havia um pequeno “buraco” que destacava a órbita sem o órgão. O pobre
homem, porém, levou sua vida normalmente, mas tinha uma estranha admiração
pelos olhos alheios. Se Ernesto estivesse apaixonado, não seria
por uma mulher ou seu corpo, inteligência, coisa e tal, mas pelos olhos. Aliás,
Ernie apaixonava-se por qualquer tipo de olho, seja ele pertencente a um humano ou
animal.
Quando eu era
criança, lembro-me de sempre vê-lo admirar o misterioso olhar de minha gata, ou
os olhos amarelados da coruja que vivia em uma das árvores no jardim da
propriedade. Sentia-me extremamente desconfortável quando Ernie olhava em meus
olhos. Era perturbador aquele olho castanho escuro olhando para os seus ao
mesmo tempo, sem falar no tapa-olho que sempre cobria sua órbita vazia, o que
me dava calafrios.
Ernesto começou a
trabalhar na minha casa quando ele e meu avô ainda eram crianças. Era
filho do mordomo da mansão e, depois que sua mãe morreu e ficou sem ter onde
morar, fora morar na propriedade do patrão do seu pai. Sendo assim, o bom e
velho empregado cresceu sob o teto das terras de minha família. Posso
considera-lo um parente de sangue diferente... Enfim, Ernie resolveu viver e
trabalhar (claro que com vários privilégios, por ser muito amigo da família)
nas propriedades do meu avô, quando ele assumiu o poder. Em todos seus anos de
serviço, o homem recebia reclamações de empregadas, cozinheiras e camareiras
que por ele eram “encaradas”; de fato, as senhoras sentiam-se desconfortáveis em
ter um homem sempre observando com um único olho seus olhos, como se aquele
órgão fosse uma arma capaz de oprimir qualquer pessoa quando recebia aquele
fixo olhar.
Foi Ernesto quem
descobriu que meu avô havia morrido. O velho estava indo levar uma xícara de
café ao amigo/patrão, que não podia sair da cama por estar muito debilitado, e
acabou se deparando com seu corpo sem vida, deitado, com os olhos bem abertos.
Encontramos, eu e meu pai, o empregado ao lado do corpo, com o olhar fixo nos
olhos abertos do cadáver. Tanto o corpo morto de meu avô quanto a expressão de
horror que deixava o único olho de Ernie totalmente esbugalhado, deixaram-me
perturbado. O velho passou dias na profunda tristeza pela morte de seu mais
antigo e melhor amigo. Quando vi o empregado chorando pela primeira vez, tentei
acalmá-lo, dando uns tapas amigáveis nas costas e abraçando-o e, ao ver seu
rosto, percebi uma coisa realmente muito estranha e inexplicável: haviam
lágrimas saindo de sua órbita vazia. “Como aquilo era possível?!” perguntei-me.
Jamais encontrei uma resposta para aquele fato. Foi tenebroso, disso tenho
certeza!
Quando atingi a
adolescência, percebi o quanto Ernie estava diferente; estava envelhecendo cada
vez mais rápido e esquecendo um pouco das coisas, mas sua obsessão por olhos
alheios continuara a mesma, talvez pior... bem pior! Uma vez, eu havia levado
minha nova namorada para conhecer a mansão da minha família e suas terras e,
obviamente, apresentei a garota ao mais fiel e antigo empregado de lá, o velho
Ernie. Eu jamais devia ter feito aquilo! O empregado, como já era de se
imaginar, ficou encantado ao olhar a beleza dos olhos da moça, tanto que ficou
exatamente 5 minutos parado em frente dela, sem dizer uma palavra, com o olho
fixo nos dela. Quando foi beijá-la, como cumprimento, tentou encostar os lábios
na testa, mas quase que eles atingiam o órgão ocular direito da guria. Aquilo
não só me deixou um tanto zangado como assustado.
Depois do ocorrido,
percebi que o empregado pouco falava ou fazia seus serviços corretamente. Meu
pai, que assumiu a propriedade da família com muita responsabilidade, achou que
o velho precisasse de descanso. Pensei o mesmo. Assim, resolvi levá-lo para um
entretenimento, uma pescaria, o que, com certeza, fora o maior erro que cometi
na vida! Aquela pescaria foi o estopim para a insanidade de Ernesto.
Tive a péssima ideia
de deixá-lo iniciar a pesca, e o velho conseguiu pegar um enorme bagre de
primeira. O anzol havia atravessado a boca do peixe até furar o olho e Ernesto,
ao tirar o objeto, acabou por arrancar o globo ocular do bicho. Aquilo, para
ele, foi um dos maiores feitos que fizera na vida. Não tiro da cabeça a imagem
de Ernie admirando aquela pequena bola ensanguentada que permitia o pobre
animal enxergar. Foi justamente o olho direito que ele arrancara do bicho. Para
completar, vi Ernie fingindo estar colocando o olho decepado do peixe em sua
órbita vazia. Terminado o “ritual” ocular, o velho empregado não mais quis
continuar a pescaria. Começou a rir. Ria descontroladamente, se mexendo tanto
que o barco na qual estávamos começou a balançar. Tal ataque fora tão
perturbador que resolvi remar até a superfície do lago, para voltarmos para
casa.
Depois daquele dia, o velho Ernie estava
completamente mudado. Havia nele algo misterioso, como se uma nuvem negra o
tivesse consumido, tirando-lhe todo o jeito simpático de ser, tornando-o um homem
frio e extremamente quieto. Agora, para Ernesto, somente olhar nos olhos de
qualquer criatura já não era o suficiente.
(Continua...)
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