terça-feira, 1 de outubro de 2013

Conto - A órbita vazia de Ernesto

 Nunca pensei que Ernesto, o empregado que trabalhou mais tempo em minha residência, desde a época em que meu avô mandava na propriedade, pudesse fazer o que fez. Sempre fora um bom homem, gentil, calmo, que jamais alguém o julgaria por algum crime ou pecado, o velho Ernie.

  O único defeito do meu antigo empregado tornou-se a causa da sua repentina loucura e obsessão por algo que não mais vejo diariamente. Ernie havia nascido sem o olho direito e sempre quis poder enxergar o mundo com os dois aparelhos de visão. Claro que, com o tempo, a pele tomou conta do lugar onde teria um olho; porém, ainda havia um pequeno “buraco” que destacava a órbita sem o órgão. O pobre homem, porém, levou sua vida normalmente, mas tinha uma estranha admiração pelos olhos alheios. Se Ernesto estivesse apaixonado, não seria por uma mulher ou seu corpo, inteligência, coisa e tal, mas pelos olhos. Aliás, Ernie apaixonava-se por qualquer tipo de olho, seja ele pertencente a um humano ou animal.

 Quando eu era criança, lembro-me de sempre vê-lo admirar o misterioso olhar de minha gata, ou os olhos amarelados da coruja que vivia em uma das árvores no jardim da propriedade. Sentia-me extremamente desconfortável quando Ernie olhava em meus olhos. Era perturbador aquele olho castanho escuro olhando para os seus ao mesmo tempo, sem falar no tapa-olho que sempre cobria sua órbita vazia, o que me dava calafrios.

 Ernesto começou a trabalhar na minha casa quando ele e meu avô ainda eram crianças. Era filho do mordomo da mansão e, depois que sua mãe morreu e ficou sem ter onde morar, fora morar na propriedade do patrão do seu pai. Sendo assim, o bom e velho empregado cresceu sob o teto das terras de minha família. Posso considera-lo um parente de sangue diferente... Enfim, Ernie resolveu viver e trabalhar (claro que com vários privilégios, por ser muito amigo da família) nas propriedades do meu avô, quando ele assumiu o poder. Em todos seus anos de serviço, o homem recebia reclamações de empregadas, cozinheiras e camareiras que por ele eram “encaradas”; de fato, as senhoras sentiam-se desconfortáveis em ter um homem sempre observando com um único olho seus olhos, como se aquele órgão fosse uma arma capaz de oprimir qualquer pessoa quando recebia aquele fixo olhar.

 Foi Ernesto quem descobriu que meu avô havia morrido. O velho estava indo levar uma xícara de café ao amigo/patrão, que não podia sair da cama por estar muito debilitado, e acabou se deparando com seu corpo sem vida, deitado, com os olhos bem abertos. Encontramos, eu e meu pai, o empregado ao lado do corpo, com o olhar fixo nos olhos abertos do cadáver. Tanto o corpo morto de meu avô quanto a expressão de horror que deixava o único olho de Ernie totalmente esbugalhado, deixaram-me perturbado. O velho passou dias na profunda tristeza pela morte de seu mais antigo e melhor amigo. Quando vi o empregado chorando pela primeira vez, tentei acalmá-lo, dando uns tapas amigáveis nas costas e abraçando-o e, ao ver seu rosto, percebi uma coisa realmente muito estranha e inexplicável: haviam lágrimas saindo de sua órbita vazia. “Como aquilo era possível?!” perguntei-me. Jamais encontrei uma resposta para aquele fato. Foi tenebroso, disso tenho certeza!

 Quando atingi a adolescência, percebi o quanto Ernie estava diferente; estava envelhecendo cada vez mais rápido e esquecendo um pouco das coisas, mas sua obsessão por olhos alheios continuara a mesma, talvez pior... bem pior! Uma vez, eu havia levado minha nova namorada para conhecer a mansão da minha família e suas terras e, obviamente, apresentei a garota ao mais fiel e antigo empregado de lá, o velho Ernie. Eu jamais devia ter feito aquilo! O empregado, como já era de se imaginar, ficou encantado ao olhar a beleza dos olhos da moça, tanto que ficou exatamente 5 minutos parado em frente dela, sem dizer uma palavra, com o olho fixo nos dela. Quando foi beijá-la, como cumprimento, tentou encostar os lábios na testa, mas quase que eles atingiam o órgão ocular direito da guria. Aquilo não só me deixou um tanto zangado como assustado.

 Depois do ocorrido, percebi que o empregado pouco falava ou fazia seus serviços corretamente. Meu pai, que assumiu a propriedade da família com muita responsabilidade, achou que o velho precisasse de descanso. Pensei o mesmo. Assim, resolvi levá-lo para um entretenimento, uma pescaria, o que, com certeza, fora o maior erro que cometi na vida! Aquela pescaria foi o estopim para a insanidade de Ernesto.
 Tive a péssima ideia de deixá-lo iniciar a pesca, e o velho conseguiu pegar um enorme bagre de primeira. O anzol havia atravessado a boca do peixe até furar o olho e Ernesto, ao tirar o objeto, acabou por arrancar o globo ocular do bicho. Aquilo, para ele, foi um dos maiores feitos que fizera na vida. Não tiro da cabeça a imagem de Ernie admirando aquela pequena bola ensanguentada que permitia o pobre animal enxergar. Foi justamente o olho direito que ele arrancara do bicho. Para completar, vi Ernie fingindo estar colocando o olho decepado do peixe em sua órbita vazia. Terminado o “ritual” ocular, o velho empregado não mais quis continuar a pescaria. Começou a rir. Ria descontroladamente, se mexendo tanto que o barco na qual estávamos começou a balançar. Tal ataque fora tão perturbador que resolvi remar até a superfície do lago, para voltarmos para casa. 

  Depois daquele dia, o velho Ernie estava completamente mudado. Havia nele algo misterioso, como se uma nuvem negra o tivesse consumido, tirando-lhe todo o jeito simpático de ser, tornando-o um homem frio e extremamente quieto. Agora, para Ernesto, somente olhar nos olhos de qualquer criatura já não era o suficiente.



(Continua...)





 

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