O crime que sujeitou o seu pobre narrador ao cárcere é
realmente um fato que ainda me causa intensos calafrios. Sinto-me ainda
perturbado pelo que vi, pelo que senti, pelo que pensei, pelo que fiz...
Tudo teve início na última apresentação de meu
“circo de horrores” numa cidade no agreste pernambucano. Sim, eu era dono de um
circo com atrações um tanto assustadoras, que deixavam crianças e adultos com
as calças borradas. Tamanhas bizarrices eram encontradas em minhas
apresentações o que, de fato, interessava bastante o público. Tive a ideia de
apresentar, pela primeira vez, minha mais nova atração em um lugar afastado do
oceano: a cidade do Brejo da Madre de Deus, próximo ao povoado de Fazenda Nova,
onde ocorre a maior apresentação ao ar livre do mundo (na qual muito invejo). Enfim,
minha nova atração horripilante era nada menos que uma sereia verdadeira, que
meus amigos e eu conseguimos capturar nas praias da capital. Sem dúvida, a
melhor pescaria que já tivemos. Felizmente, a mídia ainda nada sabia da
criatura, mas, após o espetáculo que aconteceria no Brejo, Deus e o mundo
estariam perplexos em frente à folha do jornal.
Meu circo era
transportado em um trem de carga com vagões para cada tipo de criatura
(gêmeos siameses ligados pelo tronco, ciclopes, um curupira de verdade, uma
mulher que podia se transformar em macaco...) e um último que ninguém
tinha a autorização de mexer, além de mim; era o local em que eu guardava
objetos de valor e sentimentais, ou, mais ou menos, meu quarto, já que
praticamente morávamos na estrada. Já passamos por diversos Estados brasileiros,
famosas cidades, mas pouquíssimas vezes visitávamos o interior de nossa terra
natal. Desembarcamos no Brejo no dia 29 de outubro, neste ano vitorioso de
1945.
Quando lá chegamos, as crianças nos receberam com tamanho
entusiasmo:
- Oba! O circo chegou! O circo chegou! – Vibravam elas.
- Eita! Não é um circo comum! É um circo dos horrores! Eles
têm uma mulher macaco! – Exclamavam.
E quando elas descobriram a tal “nova atração especial”,
só faltaram pirar de vez. O espetáculo seria daqui a dois dias, e já havia
pessoas querendo comprar logo suas entradas.
Meu grupo e eu decidimos acampar fora da cidade, onde ainda
havia trilhos de trem. Os organizadores do evento e as atrações montaram suas
barracas nos arredores do veículo. Eu, por outro lado, decidi me aconchegar na
cabine do maquinista, não no meu último vagão, por causa do calor. Na
madrugada, fui acordado com uma voz. A mais bela voz que já ouvi em meus 35
anos de vida. Parecia um anjo que estava a cantar suas melodias celestiais. Não
era, porém, um anjo, mas alguém mais interessante: era a sereia que, dentro da
sua enorme caixa d’água, no penúltimo vagão, emitia sons semelhantes a um
canto. Uma canção que talvez falasse de sua vida no oceano, de seus amores e
ilusões perdias. Não pude deixar a curiosidade de lado e entrei no vagão para
observá-la. Ao captura-la, do mar, percebi, juntamente com meus amigos, que a
sereia não passava de uma criatura horrenda, com guelras em vez de um nariz,
careca, com a pele coberta de escamas, os olhos sem pálpebras... era
tipicamente um peixe humanoide; mas, quando entrei em seu vagão, naquela
madrugada, deparei-me com uma moça jovem, de rosto angelical e inocente,
cabelos longos e castanhos, olhos verdes como o oceano e, de fato, extremamente
bonita, até mesmo com aquela cauda, ou barbatana, no lugar das
pernas e o corpo escamoso.
Claro, aquilo poderia ser apenas fruto da minha inesgotável
imaginação. Não acreditei, porém, que aquilo era apenas um delírio. Eu estava
lá, vendo a garota na caixa d’água cantar suas canções e olhando desconfiada
para mim. Tentei me aproximar para iniciar uma conversa, porém ela se afastou assustada.
O que eu poderia dizer a ela? Pedir
perdão, por tê-la tirado de seu lar? Mas, onde era seu lar? De onde ela veio?
Existiam outros como ela? Foram essas e outras perguntas que, infelizmente, não
conseguiram sair de minha boca. Eu estava completamente paralisado pela beleza
daquela criatura. Não acredito que, no dia seguinte, o público chamaria aquela
bela garota de “aberração”, ficaria com medo ou daria gargalhadas.
Enfim, lá estava
minha pessoa observando a moça que aprendeu a ignorar minha presença e voltar a
cantar. Aquela doce voz me deixava tranquilo, porém estava começando a me
perturbar um pouco. Decidi sair do vagão, deixa-la em paz. Quando o fiz, pude
escutar do lado de fora o som de sua música; até na cabine do maquinista
consegui escutá-la. “Por que aquilo não saia de minha cabeça?” pensei. Após
muito tempo, com os olhos e ouvidos abertos, consegui dormir. Obviamente, tive
sonhos estranhos com a sereia, mas isso não vem ao caso. Eu apenas percebi o quanto desejava aquela criatura para
mim, mesmo ela aparentando ser terrível para as outras pessoas. Mas, mesmo se a
sereia fosse um ser normal, eu não poderia me relacionar, novamente, com algum
trabalhador do espetáculo. Já tive reações com algumas garotas da organização e
até mesmo das apresentações de horror, e elas foram embora. Aquilo me deixara
um bom tempo deprimido.
Durante a manhã, os
preparativos para o espetáculo foram realizados, as atrações ensaiaram pela
última vez e a bilheteria teve todos seus ingressos esgotados. No fim da tarde,
quando a apresentação começou, a tenda estava lotada de crianças, velhos e adultos,
ansiosos pela “nova atração especial”.
A apresentação
ocorreu muito bem. Cheia de sustos, risadas e surpresas. Quando chegou a hora
da sereia, todos ficaram perplexos. Jornalistas locais, não paravam de escrever
em seus blocos, contando o que estavam presenciando; havia até mesmo um
fotografo batendo umas chapas. A sereia foi apresentada pelo proprietário do
circo, isto é, seu humilde narrador. Confesso de também ter ficado boquiaberto,
naquele momento, e, principalmente, quando a criatura começou a cantar,
emitindo aquela suave voz que quase não me deixara dormir na noite passada. O
público, obviamente, maravilhou-se com aquela apresentação. Quando todos
aplaudiram, percebi que a sereia deu um leve sorriso. Foi a primeira vez que a
vi sorrir.
Quando o show
terminou, os jornalistas que lá estavam correram em nossa direção para saber
mais sobre a criatura. Lembro que eu e minha equipe acabamos dando uma pequena
entrevista e, devido ao sucesso estrondoso da apresentação, confirmamos outra
em dois dias.
Sentindo-me cansado,
fui tentar dormir, quando toda a confusão pós-espetáculo terminou. Fui acordado
na madrugada novamente com aquela voz na cabeça. Aquele canto que me deixara
encantado estava começando a me atormentar e eu, um homem particularmente fraco
por mulheres, sentia-me enfeitiçado pela criatura que emitia aquele belo som. Levantei do meu colchão (havia resolvido acampar, em vez de
ficar na cabine) e andei em direção ao vagão onde estava a sereia. Quando lá
entrei, ela não se assustou com minha presença. Pelo contrário, sorriu ao olhar
para mim. Retribuí o sorriso, me aproximei e fiquei surpreso por ela não ter
recuado. Lá estava ela, com a cabeça para fora da caixa d’água, mostrando
aquele rosto angelical nem um pouco monstruoso. De repente, a sereia abriu a
boca e começou a cantar aquela doce canção para mim. Aproximei-me mais para poder
tocá-la, porém mal conseguia andar de tão perplexo que eu estava. Aquela
música, de alguma maneira, não estava me fazendo bem. Eu não conseguia entender
aquilo: apreciava e não suportava ao mesmo tempo aquele som. Enfim, consegui
chegar perto da moça, pus minha cabeça para dentro da caixa d’água e senti meus
lábios encostar os dela. Quando fiz aquilo, aquela música entrou completamente
em minha cabeça. Senti meu cérebro desembaralhando-se por aquela sonoridade
bela e maldita ao mesmo tempo. Imediatamente, interrompi o beijo empurrando-a
para baixo d’água. A sereia assustou-se e começou a ofegar quando apertei seu
fino pescoço sob a água; ela não podia se mexer, para me impedir, o que
resultou numa morte violenta e dolorosa para a criatura. Havia um sangue negro
saindo de sua boca e suas guelras. A sereia não mais possuía aquela aparência humana,
mas sua típica e monstruosa natureza.
“O que eu fiz, meu
Deus?!”, é um típico pensamento arrependido de alguém que se perdeu na louca
obsessão acabou cometendo o maior crime da vida depois do nascimento. Nem mesmo
eu acreditei em minha própria loucura repentina. Matei aquela bela criatura!
Fiz com que aquela aparência jovem, e mais bela qualquer garota humana,
deixasse de existir, na esperança de quem aquele som musical saísse de minha
cabeça. Após o ocorrido, felizmente, deixei de imaginar aquela canção dos
mares. Enfim, tinha de esconder o corpo da criatura. Como estava tudo escuro,
lá fora, e todos dormiam, resolvi coloca-lo no último vagão, junto com as
diversas tralhas. Nele não havia luz, tive de rezar para encontrar um lugar adequado
para escondê-la naquele espaço completamente dominado pela escuridão. Não
conseguia enxergar, mas botei o corpo ao lado de algumas coisas molengas que
cheiravam mal. Após terminar o serviço, saí do vagão e tranquei, sem ninguém
ter visto. Nos aposentos da sereia, limpei qualquer evidência do crime.
Na manhã seguinte,
inventei uma desculpa para os organizadores do espetáculo, alegando que a
criatura havia ficado doente e ninguém podia entrar em seu vagão, nem mesmo o
treinador, para deixa-la se recuperar. Meus companheiros ficaram preocupados
com a criatura e com espetáculo. Prometi que ela ficaria bem até a noite da
segunda apresentação. Porém, não tinha ideia do que fazer. Eu não poderia dizer
que a sereia havia morrido precocemente, isso tiraria o interesse do público e
faria do espetáculo um verdadeiro fracasso. Para piorar minha situação,
aconteceu algo que me deixou mais uma vez terrivelmente perturbado: a voz e a
música da sereia voltaram a atormentar minha mente. A cada minuto que passava,
aquele som me enlouquecia. Como aquela coisa não parava? O que deveria fazer
para parar com aquele inferno de uma vez por todas?!
Tive de aturar meus
colegas reclamando da suposta doença da sereia e o canto da falecida em minha
mente, nada poderia piorar o meu dia, a não ser a chegada do dia seguinte, que
teríamos a segunda apresentação. A situação melhorou um pouco dos males quando
a noite caiu, pude tentar descansar, mesmo com aquela voz zumbizando em minha
cabeça. Eu não conseguia decifrar o que aquela música dizia, era uma língua
diferente; porém, ainda não sei a razão disso, sabia que ela estava me alertando
a fazer algo.
Quando amanheceu, menti
para demais organizadores, dizendo que a apresentação da sereia estava sob meu
controle. Armamos a tenta do circo e resolvemos deixar pessoas se acomodarem no
chão também, pois daria um maior número de gente para assistir ao “Circo dos
Horrores do Dr. Abóbora”. De fato, pareceu toda a pequena cidade do Brejo estar
no circo, naquela noite.
Assim como na última
apresentação, tudo ocorreu bem, no começo. Eu, por outro lado, não sabia o que
fazer. Estava desesperado! O que eu faria para “cancelar” a apresentação da
sereia? Quando, infelizmente, chegou meu momento de aparecer no picadeiro para
apresentar a atração mais esperada, minha cabeça começou a explodir de dor, por
da música que não parava de tocar. Aquilo já estava passando dos limites, eu
não aguentaria até o fim do espetáculo.
Quando apareci para
agradecer ao respeitável público e, enfim, chamar a sereia para matar a
curiosidade de muitos, senti-me tonto, perturbado com aquela voz que estava
cada vez mais alta. Tudo que consegui dizer foi o que finalmente compreendi o
que aquela cantoria estava me dizendo: “CONFESSE, SEU ASSASSINO COVARDE!”.
Minha cabeça girava,
eu gritava sem parar: “CONFESSE, SEU ASSASSINO COVARDE!”. Quando coloquei
minhas mãos na cabeça para tentar amenizar a dor e me pus de joelhos no meio do
picadeiro, finalmente, confessei meu crime. Logo em seguida, desmaiei.
Então, acordei já na
sela de prisão, onde estou relatando esse fato ocorrido aos meus caros
leitores. Como se não bastasse, além do corpo da sereia, descobriram as outras
trabalhadoras jovens do circo, que haviam “pedido demissão”, juntamente com outras
criaturas que haviam “sumido”; suas carnes já se encontravam em estado de
putrefação, naquele fétido último vagão. Das vítimas que fiz, devida a minha
perturbadora fraqueza pelo sexo oposto, foi a sereia quem, de fato me
enfeitiçou, a ponto de eu me incriminar pelos crimes.
Apesar de ter feito o
que a música me pedia para fazer, ela jamais deixou de me atormentar a mente.
Aquela voz suave, perturbadora, meiga e assustadora ao mesmo tempo poderá me
levar a óbito qualquer dia, ou para um sanatório, onde eu possa fazer amizade
com algumas enfermeiras.
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