domingo, 20 de outubro de 2013

Conto - A Sereia do Agreste

 O crime que sujeitou o seu pobre narrador ao cárcere é realmente um fato que ainda me causa intensos calafrios. Sinto-me ainda perturbado pelo que vi, pelo que senti, pelo que pensei, pelo que fiz...

  Tudo teve início na última apresentação de meu “circo de horrores” numa cidade no agreste pernambucano. Sim, eu era dono de um circo com atrações um tanto assustadoras, que deixavam crianças e adultos com as calças borradas. Tamanhas bizarrices eram encontradas em minhas apresentações o que, de fato, interessava bastante o público. Tive a ideia de apresentar, pela primeira vez, minha mais nova atração em um lugar afastado do oceano: a cidade do Brejo da Madre de Deus, próximo ao povoado de Fazenda Nova, onde ocorre a maior apresentação ao ar livre do mundo (na qual muito invejo). Enfim, minha nova atração horripilante era nada menos que uma sereia verdadeira, que meus amigos e eu conseguimos capturar nas praias da capital. Sem dúvida, a melhor pescaria que já tivemos. Felizmente, a mídia ainda nada sabia da criatura, mas, após o espetáculo que aconteceria no Brejo, Deus e o mundo estariam perplexos em frente à folha do jornal.

 Meu circo era transportado em um trem de carga com vagões para cada tipo de criatura (gêmeos siameses ligados pelo tronco, ciclopes, um curupira de verdade, uma mulher que podia se transformar em macaco...) e um último que ninguém tinha a autorização de mexer, além de mim; era o local em que eu guardava objetos de valor e sentimentais, ou, mais ou menos, meu quarto, já que praticamente morávamos na estrada. Já passamos por diversos Estados brasileiros, famosas cidades, mas pouquíssimas vezes visitávamos o interior de nossa terra natal. Desembarcamos no Brejo no dia 29 de outubro, neste ano vitorioso de 1945. 

Quando lá chegamos, as crianças nos receberam com tamanho entusiasmo:

- Oba! O circo chegou! O circo chegou! – Vibravam elas.

- Eita! Não é um circo comum! É um circo dos horrores! Eles têm uma mulher macaco! – Exclamavam.

  E quando elas descobriram a tal “nova atração especial”, só faltaram pirar de vez. O espetáculo seria daqui a dois dias, e já havia pessoas querendo comprar logo suas entradas.

  Meu grupo e eu decidimos acampar fora da cidade, onde ainda havia trilhos de trem. Os organizadores do evento e as atrações montaram suas barracas nos arredores do veículo. Eu, por outro lado, decidi me aconchegar na cabine do maquinista, não no meu último vagão, por causa do calor. Na madrugada, fui acordado com uma voz. A mais bela voz que já ouvi em meus 35 anos de vida. Parecia um anjo que estava a cantar suas melodias celestiais. Não era, porém, um anjo, mas alguém mais interessante: era a sereia que, dentro da sua enorme caixa d’água, no penúltimo vagão, emitia sons semelhantes a um canto. Uma canção que talvez falasse de sua vida no oceano, de seus amores e ilusões perdias. Não pude deixar a curiosidade de lado e entrei no vagão para observá-la. Ao captura-la, do mar, percebi, juntamente com meus amigos, que a sereia não passava de uma criatura horrenda, com guelras em vez de um nariz, careca, com a pele coberta de escamas, os olhos sem pálpebras... era tipicamente um peixe humanoide; mas, quando entrei em seu vagão, naquela madrugada, deparei-me com uma moça jovem, de rosto angelical e inocente, cabelos longos e castanhos, olhos verdes como o oceano e, de fato, extremamente bonita, até mesmo com aquela cauda, ou barbatana, no lugar das pernas e o corpo escamoso.

  Claro, aquilo poderia ser apenas fruto da minha inesgotável imaginação. Não acreditei, porém, que aquilo era apenas um delírio. Eu estava lá, vendo a garota na caixa d’água cantar suas canções e olhando desconfiada para mim. Tentei me aproximar para iniciar uma conversa, porém ela se afastou assustada.  O que eu poderia dizer a ela? Pedir perdão, por tê-la tirado de seu lar? Mas, onde era seu lar? De onde ela veio? Existiam outros como ela? Foram essas e outras perguntas que, infelizmente, não conseguiram sair de minha boca. Eu estava completamente paralisado pela beleza daquela criatura. Não acredito que, no dia seguinte, o público chamaria aquela bela garota de “aberração”, ficaria com medo ou daria gargalhadas.
 Enfim, lá estava minha pessoa observando a moça que aprendeu a ignorar minha presença e voltar a cantar. Aquela doce voz me deixava tranquilo, porém estava começando a me perturbar um pouco. Decidi sair do vagão, deixa-la em paz. Quando o fiz, pude escutar do lado de fora o som de sua música; até na cabine do maquinista consegui escutá-la. “Por que aquilo não saia de minha cabeça?” pensei. Após muito tempo, com os olhos e ouvidos abertos, consegui dormir. Obviamente, tive sonhos estranhos com a sereia, mas isso não vem ao caso. Eu apenas percebi o quanto desejava aquela criatura para mim, mesmo ela aparentando ser terrível para as outras pessoas. Mas, mesmo se a sereia fosse um ser normal, eu não poderia me relacionar, novamente, com algum trabalhador do espetáculo. Já tive reações com algumas garotas da organização e até mesmo das apresentações de horror, e elas foram embora. Aquilo me deixara um bom tempo deprimido.

  Durante a manhã, os preparativos para o espetáculo foram realizados, as atrações ensaiaram pela última vez e a bilheteria teve todos seus ingressos esgotados. No fim da tarde, quando a apresentação começou, a tenda estava lotada de crianças, velhos e adultos, ansiosos pela “nova atração especial”.  

 A apresentação ocorreu muito bem. Cheia de sustos, risadas e surpresas. Quando chegou a hora da sereia, todos ficaram perplexos. Jornalistas locais, não paravam de escrever em seus blocos, contando o que estavam presenciando; havia até mesmo um fotografo batendo umas chapas. A sereia foi apresentada pelo proprietário do circo, isto é, seu humilde narrador. Confesso de também ter ficado boquiaberto, naquele momento, e, principalmente, quando a criatura começou a cantar, emitindo aquela suave voz que quase não me deixara dormir na noite passada. O público, obviamente, maravilhou-se com aquela apresentação. Quando todos aplaudiram, percebi que a sereia deu um leve sorriso. Foi a primeira vez que a vi sorrir.
 Quando o show terminou, os jornalistas que lá estavam correram em nossa direção para saber mais sobre a criatura. Lembro que eu e minha equipe acabamos dando uma pequena entrevista e, devido ao sucesso estrondoso da apresentação, confirmamos outra em dois dias.

 Sentindo-me cansado, fui tentar dormir, quando toda a confusão pós-espetáculo terminou. Fui acordado na madrugada novamente com aquela voz na cabeça. Aquele canto que me deixara encantado estava começando a me atormentar e eu, um homem particularmente fraco por mulheres, sentia-me enfeitiçado pela criatura que emitia aquele belo som. Levantei do meu colchão (havia resolvido acampar, em vez de ficar na cabine) e andei em direção ao vagão onde estava a sereia. Quando lá entrei, ela não se assustou com minha presença. Pelo contrário, sorriu ao olhar para mim. Retribuí o sorriso, me aproximei e fiquei surpreso por ela não ter recuado. Lá estava ela, com a cabeça para fora da caixa d’água, mostrando aquele rosto angelical nem um pouco monstruoso. De repente, a sereia abriu a boca e começou a cantar aquela doce canção para mim. Aproximei-me mais para poder tocá-la, porém mal conseguia andar de tão perplexo que eu estava. Aquela música, de alguma maneira, não estava me fazendo bem. Eu não conseguia entender aquilo: apreciava e não suportava ao mesmo tempo aquele som. Enfim, consegui chegar perto da moça, pus minha cabeça para dentro da caixa d’água e senti meus lábios encostar os dela. Quando fiz aquilo, aquela música entrou completamente em minha cabeça. Senti meu cérebro desembaralhando-se por aquela sonoridade bela e maldita ao mesmo tempo. Imediatamente, interrompi o beijo empurrando-a para baixo d’água. A sereia assustou-se e começou a ofegar quando apertei seu fino pescoço sob a água; ela não podia se mexer, para me impedir, o que resultou numa morte violenta e dolorosa para a criatura. Havia um sangue negro saindo de sua boca e suas guelras. A sereia não mais possuía aquela aparência humana, mas sua típica e monstruosa natureza.

 “O que eu fiz, meu Deus?!”, é um típico pensamento arrependido de alguém que se perdeu na louca obsessão acabou cometendo o maior crime da vida depois do nascimento. Nem mesmo eu acreditei em minha própria loucura repentina. Matei aquela bela criatura! Fiz com que aquela aparência jovem, e mais bela qualquer garota humana, deixasse de existir, na esperança de quem aquele som musical saísse de minha cabeça. Após o ocorrido, felizmente, deixei de imaginar aquela canção dos mares. Enfim, tinha de esconder o corpo da criatura. Como estava tudo escuro, lá fora, e todos dormiam, resolvi coloca-lo no último vagão, junto com as diversas tralhas. Nele não havia luz, tive de rezar para encontrar um lugar adequado para escondê-la naquele espaço completamente dominado pela escuridão. Não conseguia enxergar, mas botei o corpo ao lado de algumas coisas molengas que cheiravam mal. Após terminar o serviço, saí do vagão e tranquei, sem ninguém ter visto. Nos aposentos da sereia, limpei qualquer evidência do crime.

 Na manhã seguinte, inventei uma desculpa para os organizadores do espetáculo, alegando que a criatura havia ficado doente e ninguém podia entrar em seu vagão, nem mesmo o treinador, para deixa-la se recuperar. Meus companheiros ficaram preocupados com a criatura e com espetáculo. Prometi que ela ficaria bem até a noite da segunda apresentação. Porém, não tinha ideia do que fazer. Eu não poderia dizer que a sereia havia morrido precocemente, isso tiraria o interesse do público e faria do espetáculo um verdadeiro fracasso. Para piorar minha situação, aconteceu algo que me deixou mais uma vez terrivelmente perturbado: a voz e a música da sereia voltaram a atormentar minha mente. A cada minuto que passava, aquele som me enlouquecia. Como aquela coisa não parava? O que deveria fazer para parar com aquele inferno de uma vez por todas?!

 Tive de aturar meus colegas reclamando da suposta doença da sereia e o canto da falecida em minha mente, nada poderia piorar o meu dia, a não ser a chegada do dia seguinte, que teríamos a segunda apresentação. A situação melhorou um pouco dos males quando a noite caiu, pude tentar descansar, mesmo com aquela voz zumbizando em minha cabeça. Eu não conseguia decifrar o que aquela música dizia, era uma língua diferente; porém, ainda não sei a razão disso, sabia que ela estava me alertando a fazer algo.  
 Quando amanheceu, menti para demais organizadores, dizendo que a apresentação da sereia estava sob meu controle. Armamos a tenta do circo e resolvemos deixar pessoas se acomodarem no chão também, pois daria um maior número de gente para assistir ao “Circo dos Horrores do Dr. Abóbora”. De fato, pareceu toda a pequena cidade do Brejo estar no circo, naquela noite.

 Assim como na última apresentação, tudo ocorreu bem, no começo. Eu, por outro lado, não sabia o que fazer. Estava desesperado! O que eu faria para “cancelar” a apresentação da sereia? Quando, infelizmente, chegou meu momento de aparecer no picadeiro para apresentar a atração mais esperada, minha cabeça começou a explodir de dor, por da música que não parava de tocar. Aquilo já estava passando dos limites, eu não aguentaria até o fim do espetáculo.
 Quando apareci para agradecer ao respeitável público e, enfim, chamar a sereia para matar a curiosidade de muitos, senti-me tonto, perturbado com aquela voz que estava cada vez mais alta. Tudo que consegui dizer foi o que finalmente compreendi o que aquela cantoria estava me dizendo: “CONFESSE, SEU ASSASSINO COVARDE!”.

 Minha cabeça girava, eu gritava sem parar: “CONFESSE, SEU ASSASSINO COVARDE!”. Quando coloquei minhas mãos na cabeça para tentar amenizar a dor e me pus de joelhos no meio do picadeiro, finalmente, confessei meu crime. Logo em seguida, desmaiei.

 Então, acordei já na sela de prisão, onde estou relatando esse fato ocorrido aos meus caros leitores. Como se não bastasse, além do corpo da sereia, descobriram as outras trabalhadoras jovens do circo, que haviam “pedido demissão”, juntamente com outras criaturas que haviam “sumido”; suas carnes já se encontravam em estado de putrefação, naquele fétido último vagão. Das vítimas que fiz, devida a minha perturbadora fraqueza pelo sexo oposto, foi a sereia quem, de fato me enfeitiçou, a ponto de eu me incriminar pelos crimes.

 Apesar de ter feito o que a música me pedia para fazer, ela jamais deixou de me atormentar a mente. Aquela voz suave, perturbadora, meiga e assustadora ao mesmo tempo poderá me levar a óbito qualquer dia, ou para um sanatório, onde eu possa fazer amizade com algumas enfermeiras. 







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