sábado, 26 de dezembro de 2015

Conto: Bonecos de Cera (2014)

 Não imaginei que seria convidado à festa de aniversário do filho caçula do “Coronel de Açougueiro”, apelido dado pelos habitantes do pequeno município no oeste do país ao governante militar local, que era muito querido pelos privilegiados financeiramente e visto como o demônio em forma de um homem baixo, franzino, porém barrigudo, de longo bigode preto e chapéu, pela classe baixa, devido sérios problemas ocorridos no passado, entre eles, o fato de o coronel ter ignorado o sumiço repentino de 5 crianças de famílias pobres no município, há alguns meses. A pequena cidade de onde relato a vocês essa triste e bizarra história possui um histórico assustador de desaparecimento de crianças. Creio que entenderão o motivo quando a leitura for finalizada.

 Como único herdeiro de um famoso empresário e senhor de engenho, que falecera recentemente, tive que largar meus queridos estudos de Direito da Europa para voltar ao meu país de origem, a fim de administrar todo o capital a mim concedido e terminar o que meu pai começou. Jamais quis pertencer à “nobreza” local. Pessoas ricas, inúteis e fúteis que nada, ou muito pouco, sabem das coisas me deixam enojado. Infelizmente, para não ser visto como antipático pela classe “dominante”, resolvi fazer o papel de rico sem caráter, algo que tenho a tristeza, porém nenhum remorso, de afirmar que meu pai já foi.

  O Coronel de Açougueiro não costumava deixar pessoas entrarem em sua propriedade. Sempre fazia suas festas na sede da prefeitura local, ou em casas de recepções. Nenhum habitante do município, tampouco pessoas de fora, era convidado para passar um dia em sua residência. Porém, no aniversário de 8 anos do filho mais jovem, o governante militar resolveu festejar com uma bonita celebração dentro da sua mansão, pela primeira vez.

  Quando lá cheguei, no dia da fatídica festa, deparei-me com um belo jardim, através dos portões de metal que impediam estranhos de entrar. O local era bastante esverdeado e tal coloração era bastante visível mesmo à noite; havia esculturas gregas nos jardins, uma enorme fonte que despejava a mais cristalina água e a passagem até o casarão, feita a partir de uma peculiar estrada de pedras, ela iluminada a luz de tochas flamejantes. Com um presente na mão, um sorriso forçado no rosto, os cabelos cacheados ensopados de banha e o sobretudo esquentando (até demais) o meu corpo, subi o pequeno degrau que levava até a porta e fui recebido pelo mordomo; este, de nariz empinado, guiou-me até o salão de festas da mansão. Ao passar pelo corredor principal, não pude deixar de notar a peculiaridade das estátuas que lá havia. Eram bonecos de cera extremamente bem trabalhados de pessoas jovens, a maioria crianças, e alguns animais; as estátuas estavam localizadas em fileiras, nos dois lados do extenso e largo corredor. Uma decoração diferente. Eu jamais vi algo parecido em nenhuma residência, apenas em museus.

  Ao finalmente chegar à recepção festiva infantil, que mais parecia aquele típico baile formal de ricaços que amam explorar o ego, fui apresentado, deixei o presente com o pequeno aniversariante e cumprimentei o anfitrião. Não pude deixar de elogiar aquela brilhante coleção de bonecos de cera.


- Por acaso está pensando em abrir um museu de cera com aquelas peças, senhor? – O Coronel era muito amigo de meu pai e eu o conhecia desde criança, portanto, era comum uma pequena intimidade entre nós, apesar de não vê-lo há anos e ser a primeira vez que pisava em sua residência.
  O Coronel riu e respondeu sarcasticamente, para entrar na descontração que, ainda não sei por que diabos, eu havia causado:

- Ah, magnífica ideia, jovem Souza! – Começou a gargalhar, devia estar ficando bêbado. – Amanhã de manhã providenciarei mais bonecos, a fim de abrir um museu de cera na capital!

 Após a rápida conversa que tive com o anfitrião, este afastou-se da festa para tratar de alguns assuntos, imaginei que não voltaria tão cedo, pois parecia algo importante.  Aproveitei, então, para dar uma volta no salão. Felizmente, havia crianças brincando, correndo, presumi que fossem colegas de escola do aniversariante, o que fez a festa não parecer tão formalmente cafona.
 Estava tudo indo bem, conversei com algumas senhoras simpáticas que me contaram boatos de que o Coronel renunciaria o cargo e se mudaria para a capital, após a festa. Não acreditei naquilo, primeiramente.

 Quando o velho relógio banhado a ouro do salão de festas bateu exatamente 18 horas da noite, de repente, todas as luzes, de lâmpadas incandescentes (aquela era uma das poucas casas da região que possuía tal invento), se apagaram. Pessoas e crianças gritavam assustadas, até que um minuto depois, a energia retornou. Os convidados aos poucos começaram a se acalmar, exceto uma mulher que não estava conseguindo localizar o filho pequeno.

 A senhora estava assustada, não sabia se o filho estava com medo ou se o pequeno ainda estava no salão. Provavelmente, a criança teria se escondido em algum lugar, porém a mulher parecia cada vez mais nervosa à medida que os minutos passavam. O mordomo, o mesmo que guiou-me até o salão, então, apareceu e acompanho a mulher até uma sala da residência, para fazê-la se acalmar, talvez. Após a mãe ter sido levada pelo homem de nariz empinado, a festa voltou ao “normal”. Obviamente, algumas pessoas sentiam-se preocupadas com a situação. Uma criança havia se perdido, afinal. Pensei, porém, que encontrariam em instantes o garotinho, o que deixaria a mãe bastante aliviada.

  Exatamente meia hora depois do primeiro apagão, outro aconteceu. Este, porém, demorou um pouco mais. Meu senso observador, que há pouco tempo descobri que possuía, disse-me que algo não estava certo. Temi que, quando a luz voltasse, outra criança sumisse. Ainda não sei como essa ideia me passou pela cabeça, sendo algo tão estranho e cruel, como se eu soubesse que, de fato, aquilo aconteceria, e pior. Quando as lâmpadas voltaram a iluminar, um casal chamava a gritos pelos dois filhos, que estavam brincando quando havia luz, antes do apagão. Senti, então, uma sensação horrível.

  Como era de se esperar, os pais das crianças recém-desaparecidas entraram em pânico, assim como aquela pobre coitada senhora anteriormente. Mais uma vez, o antipático mordomo veio ao salão e levou o preocupado casal à mesma sala onde levara a mãe da primeira criança que sumiu.

 “O que diabos estava acontecendo?” perguntavam-se as pessoas, inclusive eu. Presumi, porém, que o próprio mordomo havia encontrado elas e conduzira os pais ao seu encontro, ou que tudo não passava que uma brincadeira de mau-gosto de criança e o mordomo, que teria descoberto os engraçadinhos de um a um, havia tido a ideia de chamar os pais para dar uma lição de moral nas crianças. Porém, assim como a desesperada mãe, não sabemos mais nada a respeito do casal. O mordomo subiu ao palco onde a orquestra tocava para avisar aos convidados que estava tudo bem, que, de fato, era justamente aquilo que eu pensara: tudo uma brincadeira de criança, para assustar a todos que estavam lá. Pareceu a maioria se acalmar, após tal pronunciamento; eu, por outro lado, desconfiei, pois havia, realmente, um grande número de crianças correndo no salão, e não imagino que havia um determinado grupo que decidiu começar a suposta brincadeira, até pelo fato de a segurança da mansão ter sido reforçada por conta da celebração da noite. Que criança teria acesso aos equipamentos de energia da propriedade?  Sem falar que nem os pequenos, tampouco os seus pais, retornaram ao salão de festas.

  A fim de esfriar um pouco a cabeça, desloquei-me para uma janela, um pouco mais afastada da concentração, quase completamente escondida por uma enorme cortina de seda cor de champanhe; porém, acabei formulando novas especulações a respeito do que teria acontecido. Eu queria muito seguir o mordomo, entrar naquela sala estranha para me certificar se ele estava ou não falando a verdade; porém, havia seguranças na porta de entrada da sala. Se tudo estava bem, pra que tanta guarda? Não, não estava nada bem, e ainda não me conformo como aqueles ricos hipócritas não conseguiam enxergar aquilo!

 Enquanto refletia sobre os fatos ocorridos, uma mulher, com uma criança de aproximadamente 4 anos no colo, sua filha, talvez, aproximou-se de mim, para perguntar se estava tudo bem. Era jovem e aparentava-se preocupada com sua filha. Contou-me que queria sair da festa, antes que outro incidente estranho acontecesse, mas não a deixaram sair.

- Como assim?! – Perguntei indignado. – Estão deixando ninguém sair da mansão?

 A mulher respondeu:

- Foi o que os seguranças da porta da frente me disseram. Na verdade, fizeram-me entender isso, dizendo que seria de tamanha falta de respeito se abandonássemos a festa antes do importante pronunciamento no anfitrião e o corte do bolo do aniversariante. – Explicou a mulher. – Insistiram muito para nós duas ficarmos. Quando o vi parado diante à janela, sozinho, achei que fosse a única pessoa que eu devia contar o quanto estou preocupada. Você tem filhos?

 Antes de responder, pensei um pouco se iria, ou não, dizer a ela o quanto eu estava achando os acontecimentos suspeitos. Não desejava assustá-la ainda mais.

- Não tenho filhos. Mas entendo perfeitamente que queira proteger sua filha. – Parei um pouco para respirar fundo. – Senhora, eu acho que está acontec...

  Meu início de conversa foi interrompido por outro repentino apagão. Dessa vez, as pessoas gritaram com verdadeiro pânico.

- Segure na minha mão! – Falei para a mulher, estendendo a mão.

  Ela agarrou fortemente minha mão direita. Ambas as mãos, tanto a minha quanto a dela, estavam tremendo. Ouvi sua filha começar a chorar. De repente, senti sua mão separar-se da minha e escutei um pequeno grito sendo abafado. Nada consegui enxergar, devido à escuridão. Pela primeira vez, naquela noite, o medo tomou conta de mim por completo.

  Quando as luzes se acenderam novamente, olhei para o lado e me espantei ao ver que, desta vez, tanto a criança quanto a mãe haviam desaparecido. Ninguém mais teria visto aquela mulher com a filha junto a mim, portanto, não houve estardalhaços vindos dos demais convidados. Eu, por outro lado, estava horrorizado. Fiquei ainda mais perturbado quando aquele mordomo infeliz subiu ao palco novamente para informar que a brincadeirinha infantil já teria terminado – outra vez, no caso, o que deixou aquela desculpa ainda mais absurda -. Eu tinha a absoluta certeza de que aquilo era uma maldita mentira. Uma criança e a mãe foram simplesmente sequestradas debaixo do meu nariz! Eu tinha que descobrir onde elas estavam... onde todos os que desapareceram estavam!

  Havia seguranças em todos os locais que davam acesso aos cômodos do casarão. Era, portanto, impossível subir as escadas para investigar. Felizmente, a janela na qual eu encontrava próximo estava aberta. A ideia de fugir jamais passou pela minha cabeça, porém a de escalar até os andares superiores dava-me um pouco de receio;  mas aquilo tinha de ser feito, pois, talvez, era minha pessoa a única com noção do que estava realmente acontecendo. Tomei fôlego, respirei fundo, não pensei na tamanha loucura que estava a fazer, e escalei da janela para a superior. Se, por acaso, eu caísse, a queda não seria fatal, talvez me deixasse ferido, ou com algum osso fraturado.

  Ao subir, abri cuidadosamente a janela pelo lado de fora e entrei. O segundo andar parecia-me bastante calmo e pouco iluminado. O som da banda a tocar ecoava por toca a casa. Dessa forma, eu mal conseguia escutar um barulho por perto, se houvesse algum. Quando a música parou por um instante, escutei passos e imediatamente me escondi. Era o mordomo de nariz empinado que batera na porta dos aposentos do dono da propriedade, alertando:

- Estão todos no porão, senhor. Devo dizer-lhes para esperar ou podemos começar?

- Não. – Respondeu imediatamente o Coronel de Açougueiro. – Descerei agora mesmo.

 Do que eles estavam falando? Seja lá o que for, talvez a resposta estivesse no porão. Esperei o Coronel descer, para aventurar-me novamente nas janelas do casarão. A descida pareceu mais fácil. Quando meus pés se encontraram com o solo do quintal da propriedade, corri cautelosamente até encontrar a entrada do porão. Felizmente, não havia muitos seguranças nos arredores, apenas dois no portão principal. Quando finalmente achei a pequena porta que dava acesso ao local tão procurado por mim, abri uma pequena brecha, para poder espiar o que estava se passando.

 Lá estava o Coronel, gargalhando feito um louco, juntamente com alguns de seus empregados, exceto o mordomo. Estavam todos em volta de um enorme caldeirão borbulhando; pelo cheiro, o material fervendo parecia cera. Imediatamente, me veio na cabeça um terrível pensamento que, infelizmente, pude comprová-lo ao olhar atentamente todo o porão: lá estavam as crianças que haviam desaparecido, juntamente com seus pais; todos estavam nus, desacordados, de olhos bem abertos, porém não pareciam mortas, mas anestesiadas. Foi então que percebi o que realmente eram aquelas estátuas de cera, no corredor de acesso ao salão de festas: havia lá exatamente 3 bonecos de meninos e 2 de meninas, o mesmo número de crianças desaparecidas, há um tempo, além de diversas outras estatuas de crianças que “desapareceram” ao longo dos anos de governo do Coronel de Açougueiro. Fiquei extremamente em choque quando os empregados do coronel, após realizarem um processo de conservação do corpo das vítimas, despejaram as crianças no caldeirão e em seguida seus pais.


 - De fato, será uma bela coleção, senhor! – Exclamou um dos empregados.

 O Coronel abriu uma garrafa de vinho que trouxera consigo, serviu aos empregados e após tomar um grande gole na garrafa, disse:

- Senhores, eu declaro oficialmente aberto nosso ramo de comercialização de bonecos de cera! - Bebeu mais um gole. – Assim que eu terminar meu discurso de despedida e encerar a festa de meu filho, todos nós partiremos daqui para Londres. Madame Tussaud vai enlouquecer com as nossas obras. Ou, podemos abrir nosso próprio museu.

  Eu não podia, nem queria escutar mais nada. Fechei a pequena porta do porão, sem acreditar no que vi. Meu corpo tremia em todos os lugares, quase não consegui me pôr de pé, porém, era fundamental sair dali, pois o Coronel logo sairia também. Se ele soubesse que eu estava lá espiando... talvez eu até virasse um boneco. Eu realmente não sabia o que fazer, se chamaria a polícia ou outras autoridades, apesar de o psicótico anfitrião ser a única autoridade do município de Açougueiro. Enquanto recuperava-me do choque, tentando levantar do chão, senti o cano de uma garrucha encostado em minha cabeça e escutei a voz fria e assustadora do mordomo dizendo:

 - Se der uma palavra, perderá os miolos! O Coronel quer ver você, antes de matá-lo.

 Obrigando-me a andar até um lugar certo para encontrar o coronel e posteriormente terminar comigo, o mordomo não esperou que minha agilidade fosse tão grande a ponto de livrar-me da arma, desviando-me dela e jogando-a para longe quando quebrei o braço daquele imundo e covarde homem de nariz empinado. Felizmente, o mordomo era um homem velho e lento. Este, porém, possuía uma faca e, com a mão esquerda, deferiu-me um golpe que quase acertou minha barriga. Eu não tinha outra escolha além de segurar fortemente a mão do sujeito, fazendo-o apontar a faca para si e, com isso, enterrar o objeto pontudo no próprio peito. O mordomo, então, escancarou a boca e esbugalhou os olhos, antes de cair imóvel, perante meus pés.

 Sim, eu acabara de matar um homem, menos de uma hora de ter visto a maior brutalidade que alguém pode ver. Não tive a intenção, é claro, mas, não pude evitar. Mais uma vez sem saber o que fazer, fugi, deixando o corpo do mordomo traiçoeiro no chão e aquelas pobres pessoas queimadas com cera quente até se tornarem bonecos. Pulei o muro da propriedade (ainda não sei se fui ou não visto pelos seguranças) e corri. Quanto mais eu corria, a dor, a fúria, o arrependimento e todos os terríveis sentimentos que um indivíduo pode ter aumentavam em mim.

 Quando finalmente cheguei a minhas terras, tranquei-me dentro de casa. Decidi que seria mais prudente fugir para alguma cidade pequena distante, pois o coronel saberia que fora eu o responsável pela morte de seu mordomo, além de saber da sua doentia obsessão por bonecos humanos. Então, preparei uma mala com roupas, objetos de valor e todo o dinheiro que estava comigo, e tive a cruel, porém fundamental, decisão de incendiar a antiga casa de minha família, para todos do município, inclusive o próprio Coronel de Açougueiro, pensarem que eu estava morto.

  Foi justamente o que fiz: taquei fogo na minha própria residência. A partir daquele momento, passei tornei-me a vergonha da família Souza, mas aquilo tinha de ser feito e não havia mais nada em minha mente além de incendiar o casarão para forjar minha morte. Após tal feito, peguei meu melhor e veloz cavalo e parti daquele município que jamais retornaria outra vez.

 Comecei uma nova vida, numa cidade distante no interior. Arranjei um simples emprego para esconder minha identidade e usei boa parte do dinheiro que possuía para comprar uma nova casa e tentar constituir uma família. Em um ano, após a desgraça que, por hora, já havia me esquecido, tudo estava muito bem, até uma manchete de jornal chamar minha atenção: “Ex-Coronel inaugura museu de cera na Europa”. Aquilo me fez lembrar, não só da brutalidade que assisti, como também do fato de eu ter praticamente dado a ideia de abrir um museu para aquele maldito psicopata e, como sempre, eu não podia fazer nada. Que Deus tenha pena de minha alma.



Uma História de Pescador

 Muitos pescadores, marujos e até oficiais da marinha dizem que essa é uma daquelas histórias pra fazer um velho Lobo-Do-Mar dormir. Impossível. Uma das únicas coisas que faz um homem que passa o dia ou a vida no mar realmente dormir é uma bebedeira após o expediente.

A tal “história” é um fato para os conhecidos do velho Bill Carter, um experiente pescador que teria ficado louco após os possíveis acontecimentos que aqui serão relatados. Carter, segundo antigos amigos de trabalho, nunca mais foi o mesmo, depois do ocorrido. Dizem até que o pobre homem foi acusado de matar o próprio filho deficiente. O jovem Jason possuía uma deficiência física cruel para um rapaz de sua idade: não possuía as duas pernas e, desde a infância, vivia confinado em uma cadeira de rodas. Os colegas de Bill jamais acreditavam na possibilidade dele ter assassinado o filho, pois sabiam eles que seu amor e dedicação pelo garoto eram incondicionais.

 Jason perdeu as pernas quando ainda era bebê, em um acidente de carro provocado pela sua mãe embriagada. Ela estava dirigindo em alta velocidade numa pista de limite até 24 milhas por hora, por ser uma via pública e perto da única escola pública da ilha onde viviam, até invadir a pista contrária e bater em cheio contra um ônibus escolar cheio de crianças. Muitas delas ficaram gravemente feridas, enquanto 3 vieram a óbito. Charlotte - esposa frustrada de Bill e mãe irresponsável de Jason - morreu na hora. A pobre criança sofreu ferimentos graves e precisou ter as duas pernas amputadas. Como se não bastasse, a história do seu começo de vida correu pela ilha (que era muito parecida com uma pequena cidade do interior, onde todo mundo sabe a respeito da vida de todo mundo, principalmente o padre) e, quando chegou na infância, o pequeno Jason não tinha sequer um amigo. As crianças da sua idade eram orientadas a não falar com ele, a não ser para zombar ou praticar atos de maldade. 

 Professores e funcionários da escola, cujos alguns alunos faleceram devido ao acidente provocado pela mãe do caro, ojerizavam o menino e faziam de tudo para que Jason, mesmo deficiente, não recebesse atenção.

 Revoltado com o comportamento primitivo e maldoso das pessoas da escola, Bill resolveu tirar o filho de lá e educa-lo sozinho na sua casa e, na maioria das vezes, no seu barco. Não queria, porém, que o garoto fosse pescador, mas algo maior.

 A tal história começa quando Jason atingiu seus 18 anos de idade. Na época, ajudava o pai e tirar a tirar a cabeça e as vísceras dos peixes, exigência brutal, segundo o próprio Bill, da companhia para a qual trabalhava. O pagamento, porém, daria para financiar uma boa faculdade para seu filho. Numa tarde de verão, o clima estava bastante agradável na ilha de Emmetty, e Bill resolveu sair com seus velhos amigos e companheiros do mar para almoçar, deixando Jason responsável pelo barco e pelos peixes.

- Qualquer coisa, se alguém estranho aparecer, ou algum Kraken emergir do oceano, coisas do tipo, é só tocar o apito. Tudo bem? – Aconselhou Bill.

- Pode deixar! Se alguma dessas coisas realmente acontecer, vou correndo até a cabine para chamar o senhor! – Brincou Jason, que movia a cadeira tranquilamente pelo convés, como quem estivesse passeando. O garoto gostava de passar tardes ensolaradas no barco ancorado. Sentia-se enjoado, porém, quando estava em alto-mar.

 Bill, então, rumou até a praia, onde aguardaria por sua carona até o destino combinado pelos seus amigos, deixando Jason a sós com os peixes que iria decapitar e destripar (com boas intenções, claramente) com o seu facão.

 Jason estava tranquilamente fazendo seus serviços com os peixes, deixando as cabeças e as vísceras em um balde e sempre com outro de reserva, caso desejasse vomitar. A tarde estava agradavelmente ensolarada. As gaivotas voavam de um lado para o outro e o cheiro da maré estava penetrando pelas narinas do jovem filho de pescador. Havia ninguém por perto, nem mesmo outros barcos ancorados. Tudo estava tranquilo, até Jason escutar um barulho vindo do mar, como se algum peixe tivesse pulado para fora d’água e voltado.

 Imediatamente, o garoto moveu sua cadeira até a borda do barco, para observar o que havia na água. Viu, porém, absolutamente nada. Após retornar aos seus afazeres, Jason escutou novamente um barulho. Este, por outro lado, era diferente. Assemelhava-se a uma voz a cantar. De repente, escutou um canto de uma voz que tocou todos os seus sentidos. Jamais escutara voz tão agradavelmente bela. 

 Ao olhar para trás, o garoto deparou-se com uma criatura do mar pendurada na borda, metade humana, metade peixe, de longos e ondulados cabelos loiros que cobriam metade de seu corpo, olhos mais verdes que o próprio oceano e um rosto angelical capaz de trazer paz e serenidade até ao pior nos demônios. Jason jamais vira coisa tão bela.

 A sereia, então, olhou com um semblante triste e confuso para as penas cotós de Jason, se perguntando, talvez, o motivo de um rapaz tão jovem e cheio de vida estar condenado a não poder andar. Jason, por outro lado, ainda estava em choque, paralisado e de boca aberta diante de tanta beleza que a criatura transmitia. Esta, porém, começou a se comunicar:

- Você é... diferente. – Falou a sereia.

Impressionado com o fato de uma criatura mitológica, que, há 10 minutos, jamais sonhava em conhecer, falar, o rapaz rebateu:

- Você também é...

- O que aconteceu com sua cauda e suas barbatanas? – Perguntou inocentemente a sereia.

- Bom... eu não sou como você. Sou humano. Humanos não precisam de barbatanas. Temos, sim, um tipo de cauda, chamado apêndice, que só serve para estourar, operar e causar estragos.

 A sereia riu da explicação de Jason. Um riso delicadamente fino e gracioso. Terminando de rir, respondeu:

- Eu sei disso, marujo. Queria apenas saber do paradeiro de suas pernas e seus pés. Não acho justo alguém tão jovem, bonito e cheio de vida para viver como ti estar confinado a esse tipo de objeto com rodas. – Disse a sereia, referindo-se a cadeira de rodas.

- Pois bem... muita gente mais importante do que eu, mais inteligente, mais velha, mais sábia, mais tudo, na verdade, também está confinada a viver em uma cadeira de rodas. Isso não é culpa nossa. É a vida que nos acontece. – Respondeu Jason, aproximando-se um pouco da criatura, para vê-la mais de perto.

 Houve um breve silêncio quando o rapaz e a criatura marinha se entreolharam. Olhos marrons como terra entrando em contato com os olhos verdes como o oceano. Quando, finalmente, a sereia começou:

- Eu posso levar você comigo, marinheiro. Lá embaixo, talvez você possa viver como alguém da minha espécie. – Disse, já segurando fortemente a mão de Jason.

- Eu... realmente não acho que seja uma boa ideia. Não posso desenvolver barbatanas, nem mesmo guelras.

- Olhe pra mim – disse a sereia, apontando para o próprio pescoço -, tenho guelras? Não! Você irá se adaptar, como um de nós. Lá nas profundezas, há uma magia que poderá conceder-lhe a capacidade de se mover.

 Mal sabia Jason que sereias são experts em atrair homens para as profundezas do oceano, contando a mais deslavada mentira ou, até mesmo, obrigando-o violentamente. No caso desta sereia, ela sabia jogar muito bem para o lado de inventar alguma história para atrair sua vítima.

 O rapaz estava evitando cair na tentação da bela sereia. Sabia que era impossível o fato de existir uma magia no fundo do mar que lhe daria pernas, cauda ou barbatanas, qualquer coisa que o fizesse se mover, porém, não conseguia tirar da cabeça a possibilidade. Ainda com uma mão presa a da sereia, Jason olhou novamente em seus olhos. Ela retribuiu o olhar e começou a sorrir. Não era, porém, aquele sorriso belo e sereno de antes, mas algo estranhamente malicioso e perturbador, como se a sereia estivesse prestes a fazer alguma grande maldade.


 Bill terminara de comer com seus amigos e decidiu passar rapidamente no barco para ver como estava seu filho e os peixes. Atravessando a pequena ponte de madeira que dava acesso aos transportes marinhos, Bill avistou seu barco e lá entrou. Chegando ao convés, esperava encontrar seu filho bem, com o serviço terminado; porém, o velho Lobo-Do-Mar deparou-se com a visão mais aterradora que tivera em toda a sua vida.

 Ao se deparar com aquilo, suas pernas estremeceram, fazendo-o cair no chão. Seu filho estava se arrastando pelo convés, usando um esfregão molhada para limpar uma poça de sangue deixado pelo corpo mutilado de alguma criatura marinha da qual Bill não podia acreditar em estar vendo. Jason limpava o sangue expelido quando este cortou o pescoço e a calda da sereia, matando a criatura que tentara lhe enganar. A cabeça do ser metade garota, metade peixe, ainda estava no convés, de olhos abertos. Jason estava feliz, cantarolando enquanto limpava o convés ensanguentado do barco. Quando Bill recuperou parte dos seus sentidos, notou que, perto do garoto, havia um tipo de causa de sereia, porém oco. O rapaz havia retirar toda a carne e os ossos da cauda da sereia. Ainda não conseguindo acreditar naquilo, Bill finalmente perguntou:

- Filho... você... você pode me explicar o que diabos está acontecendo?

 Jason parou de cantarolar e passar o esfregão no piso, olhou para o pai e respondeu calmamente:

- É minha chance, pai! Minha chance finalmente fazer algo, me mexer! Essa... sereia, ela quase me enganou, querendo me levar para as profundezas e me matar. Mas, eu fui mais esperto do que ela...

 Terminando essa última frase, o rapaz soltou uma assustadora gargalhada que aterrorizou o pai. Após isso, Jason pegou o tronco decapitado da criatura e, com dificuldade, arremessou para o mar; em seguida a cabeça.

- Cortei sua cauda. Vou usá-la para nadar, uma coisa que sempre quis fazer. – Disse Jason, enquanto se arrastava até a cauda da sereia.

- Meu filho... – Murmurou Bill - Pare com isso! Você está doente!

 Era, porém, tarde demais. O garoto já havia encaixado seus cotós de perna na ensanguentada e gosmenta cauda morta, em uma cena da qual Bill desejaria jamais ter presenciado, devido à tamanha bizarrice. Seu filho havia enlouquecido. Depois de todo sofrimento que já passara, de todo preconceito e ódio enfrentado por Jason, Bill, de certa forma, imaginava que a sanidade mental de seu filho iria se deteriorar.

 Bill tentou se levantar para impedir o filho de fazer uma bobagem ainda maior. Mas, o velho pescador fora golpeado ainda mais pelo o choque daquela bizarra situação quando Jason aproximou-se da borda do barco e, finalmente, se atirou ao mar. O rapaz tentava mover suas novas “pernas”, porém, algo estava fazendo-o se afogar. Não era apenas sua inexperiência com o nado – o rapaz jamais teve a oportunidade de nadar na vida -, mas alguma coisa estava puxando o garoto para as profundezas do oceano.

 Cambaleando até a borda, praticamente afogado pelas lágrimas e ainda em estado de choque, o velho Bill pôde observar seu filho se debater na água salgada que ainda se encontrava vermelha devido aos restos da sereia que lá foram jogados. O pescador jurou, por tudo que é mais sagrado, ter visto a cauda vestida em seu filho subir até o abdômen do garoto e apertá-lo. Jason, porém, não gritava, tampouco gemia de dor; continuava a rir e achar que estava, finalmente, livre. Quando Bill captou com seus lacrimejantes olhos a cauda consumir seu filho por completo e submergir o garoto para as profundezas, o velho Lobo-Do-mar desmaiou.

 Após quase 20 anos do fatídico possível ocorrido, o velho Bill ainda se encontra internado em um sanatório da capital. Muitos de seus amigos pescadores ainda lhe fazem visitas, sempre relatando que o ex-pescador conta a mesma história todas às vezes e que o pobre homem continua a sofrer com aquele trauma. Dizem até que Bill, desde então, jamais pôs um peixe na boca e que prefere passar os poucos anos de vida que lhe restaram longe do litoral ou de qualquer coisa que o faça lembrar o oceano.


 O corpo de Jason Carter jamais foi encontrado, assim como os restos da misteriosa sereia.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Passado, Futuro, Presente de Natal

 Era madrugada da véspera de natal. Daqui a vinte e quatro horas, pensava Ernest, sua casa estaria cheia de parentes distantes e pessoas das quais o garoto não fazia ideia de quem era. Queria parar de pensar na data comemorativa que mais odiava em todo o ano. Queria parar de sentir o que estava sentindo desde que perdera o gosto pela vida. Desde que desistira da sua vida acadêmica, profissional – seu sonho de ser um renomado escritor de ficção científica havia decido pelo ralo, após uma vergonhosa desaprovação de uma editora – e, principalmente, amorosa, nada estava dando certo.

 O ano que estava passando, 1955, não havia sido um de seus prediletos. Sabia Ernest que a culpa não era do período de 365 dias, e sim de seus feitos e de si próprio, além, claro, de algumas pessoas que vivem (algumas, na verdade, viviam) ao seu redor, sem falar de algumas escolhas não sábias feitas pelo rapaz. Estava Ernest, um garoto de apenas 19 anos, mas cheio de rancor, tristeza, mágoa e, segundo ele, sofrimento, em seu quarto, à luz fraca, quase apagando, de uma pequena luminária na sua mesa de cabeceira, sentado na sua cama, observando de sua janela a neve branca cair e cobrir todo o quintal de sua casa. Ernest, na verdade, aguardava um telefonema de uma pessoa da qual sentia muita saudade e vontade de que ela retornasse. Sabia ele que por ela não era mais amado, mas, uma garota como Diana, que, para Ernest, foi a pessoa mais importante de toda a sua vida, era daquelas da qual valia a pena morrer para reconquistar. Ernest estava determinado a lutar até o fim por Diana, ou esperar anos para que a jovem tornasse a ter interesse por ele. As chances, porém, eram mínimas. Mas a esperança seria a última a morrer.

 Resolvido de que não receberia uma ligação às 3:15 da madrugada, o garoto, então, resolveu levantar de sua cama, sair de seu quarto e começar a caminhar pela residência. No exato momento em que botou o pé para fora do quarto, Ernest sentiu uma gelada corrente de ar subir pelos seus pés e correr em seu corpo até chegar à espinha, fazendo seus cabelos da nuca arrepiar. Quando começou a caminhar pelo longo corredor que dava acesso aos quartos, Ernest sentiu uma sensação estranha, além de um cheio pouco comum. A casa simplesmente fedia a bolor e parecia estar bastante empoeirada. Com uma lanterna na mão, o rapaz iluminava o corredor e percebia quantas teias de aranha havia nas paredes, entre os quadros e em todos os lugares. Talvez, a coisa mais estranha de tudo aquilo foi o fato de Ernest ter escutado um barulho de asas batendo, do lado de fora da sua casa, como se um pássaro de grande porte estivesse sobrevoando o telhado. Pouco menos de 3 minutos depois de ter escutado o barulho, este parou.

 De repente, o garoto sentiu a necessidade de ir até o quarto de seus pais para ver se estava tudo bem. Quando lá chegou, a porta estava fechada e a maçaneta tão suja que, após Ernest girá-la para poder entrar, a palma de sua mão ficou completamente preta. Quando entrou, percebeu que nada, nem ninguém, lá havia. Não havia cama, não havia poltrona, não havia o guarda-roupa, não havia espelho, não havia seus pais. Só havia pó, muita sujeira e ratos no local. O barulho de asas tornou a acontecer, ficando cada vez mais forte.

 Assustado e com o corpo estremecido, Ernest correu em direção ao quarto da sua irmã, para tentar obter alguma resposta sobre o paradeiro de seus pais e o motivo da casa estar tão empoeirada. O barulho das asas no telhado parecia segui-lo, quando, de repente, parou outra vez.  Enquanto corria, o rapaz sentiu seu corpo desequilibrar e suas costas doerem. Esborrachou-se no chão e teve dificuldades para levantar. Quando se pôs de pé, sentiu que não poderia mais correr. Seu corpo estava dolorido e, de alguma forma, desgastado. Andou, então, até o quarto de sua irmã. Chegando lá, deparou-se com absolutamente nada além de um espelho.

 Abrindo a porta do quarto e dando de cara com o espelho, Ernest finalmente havia acordado. Percebeu o que os 60 anos de arrependimento e decadência fizeram consigo, com sua casa, com sua família, com sua vida. Sua pele enrugada, marcas de um passado cheio de arrependimentos e mágoas de feitos e conquistas das quais o garoto, que, na verdade, não passava de um velho covarde e acabado, havia desistido de lutar para conseguir, nunca esteve tão suja, diante de um espelho tão antigo e mal cuidado. Ernest desistira da vida, depois de uma juventude solitária, cheia de decepções acadêmicas, profissionais, familiares e, principalmente, amorosas.

“Covarde!” repetia sempre a si. De tanto se considerar um covarde, pôs tal ideia na cabeça e passou a viver como um. Enquanto seus familiares subiam, Ernest descia um nível a cada ano que passava.

 Convencido de que teria despertado de um sonho – ser jovem novamente e fazer de tudo para reconstruir o que ele havia deixado escapar, isto é, seu futuro -, Ernest resolveu descer as escadas de sua velha residência (uma casa antiga, porém extremamente espaçosa, pois sua família possuía um dos sobrenomes mais influentes da cidade) e passar o resto da madrugada na sala de estar, espaçosa, porém, vazia. O lugar abrigava, agora, apenas uma lareira e algumas poltronas. No passado, em períodos de festas de fim de ano, aquele local escuro, mórbido e vazio, na qual Ernest se encontrava, era repleto de alegria, luzes decorativas, crianças correndo, família reunida e muito amor. Infeliz era o velho Ernest, que pouco dava valor ao Natal em família, quando todos estavam vivos para comemorar. Seus únicos parentes que ainda viviam, sobrinhos netos e primos de segundo e terceiro grau, mal sabiam de sua existência.

 O velho, então, aproximou-se da lareira e acendeu uma pequena chama, para tentar se aquecer e iluminar um pouco o ambiente escuro de sua casa. Sentando-se numa poltrona que ficava de frente para a lareira, Ernest procurou se aquecer. Estava sozinho, como sempre, porém, a solidão daquela véspera de natal, não era como a dos feriados passados. Sentia-se dentro do livro “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens, onde sua pessoa era a imagem do “fantasma do natal futuro” do velho avarento Scrooge. Pensando nisso, Ernest levou as mãos ao rosto e começou a chorar, coisa que jamais sonharia em fazer. Estava realmente vulnerável.

 O velho acreditava que, pelo menos, a batida de asas estava apenas na sua imaginação enquanto ainda pensava ser jovem. Antigamente, antes de perder o sentido da vida, Ernest tinha uma paixão por aves. Estudava-as quando podia e sempre mantinha seu livro de “Pássaros Observados” atualizado. Diana, a mulher mais importante de toda a sua vida, apesar de ter lhe causado muita dor, havia lhe dado um corvo de presente, há muitos anos, no natal de 1954. Ernest e o animal tornaram-se grandes amigos, desde então. O corvo é a ave mais inteligente do mundo animal e o velho Ernest, que na época era um rapaz prestes a se perder para sempre, tinha total carinho pela espécie, devido principalmente ao poema que ele mais gostava, de seu autor favorito, Edgar Allan Poe: “O Corvo”. O animal, porém, o deixou no mesmo dia em que Diana lhe disse adeus, para sempre. Simplesmente, bateu as asas e voou de seu pequeno santuário, que ficava dentro do quarto do rapaz.

 Atormentado pela mulher que mais amou e pelo melhor presente que ganhara na vida, Ernest jurou que ainda podia ouvir as asas batendo. Porém, as proporções sonoras do batido não se assemelhavam com o voo de um corvo, mas de uma ave maior. Com medo, o velho procurou levantar-se rapidamente para observar pela janela se avistava alguma coisa do lado de fora da residência. Parecia tudo estar tranquilo, a não ser pela neve que caia constantemente.

 De repente, ouve-se um estrondo, como se uma dúzia de tijolos estivesse sendo derrubado de dentro da casa, o que, de fato, estava acontecendo. Uma parede do lado direito da chaminé havia “explodido” e, de dentro dela, uma figura monstruosa surgiu, sobrevoando a casa enquanto o velho Ernest gritava aterrorizado, pelo socorro. Era um corvo gigante, com mais de 2 metros de altura e 5 de largura, de penas extremamente escuras e um olhar tenebroso, voltado a tudo que encarava pela frente. Enquanto ainda gritava por ajuda, o animal destruía a casa do velho, arrastando suas asas pelos lustres, derrubando-os, bicando a chão de madeira, espalhando pedaços pontudos para todos os lados. Ernest, caído no chão, se arrastou até uma mesa na sala de jantar, ficando escondido debaixo dela. Rezou para que alguém o socorresse, mesmo sabendo que estava sozinho. Pediu para que aquilo não fosse verdade, para que ele enfim acordasse de um pesadelo que enfrentava desde 1955 e que só agora chegara ao ápice. No que aparentava ser seus últimos momentos de vida, pensou em Diana. Pensou no quanto aquela mulher havia mudado sua vida para melhor, em um momento de profunda dor e solidão, e, sem mais nem menos, o abandona. Pensou no quão tolo ainda era por amá-la. Pensou em como seria seu paraíso, quando finalmente estivesse morto: se Diana estaria ao seu lado, mesmo que ela não fosse real e apenas um delírio de sua alma recém-desencarnada.

 O corvo gigante, então, finalmente alcançou o velho Ernest. Retirando violentamente a mesa que protegia o homem do chão, o animal o encarou por um instante antes de cortar sua garganta com as afiadas garras de uma ave. Quando finalmente sinalizou que iria fazer, Ernest despertou em seu quarto.

 Ofegando muito e ainda bastante assustado com o que havia vivido no pesadelo, o rapaz viu que seu relógio de pulso marcava 3:16 da madrugada de uma véspera de Natal de 1955. Ainda sem acreditar no que acabara de ver e presenciar, o garoto sentou-se na sua cama e começou a chorar. Aquela visão do seu futuro era o que ele precisava para não jogar suas oportunidades na lixeira. Não podia viver com base no sofrimento ou na mágoa, mas procurar uma saída para cima, em vez permanecer no chão. Levantar voo como uma ave. Determinado a não permitir que sua história fosse semelhante ao seu “fantasma do natal futuro”, Ernest deu a si próprio um presente de natal baseado nos seus aprendizados no passado: uma nova chance.

 Decidiu que tornaria a escrever e melhorar cada vez mais seus dons literários, além de concluir os estudos para ingressar na Universidade de Letras. Outra coisa que o rapaz percebeu que precisava fazer era dedicar-se a sua família. Jamais seria ele um homem de verdade se não amasse sua família como ela o amava.

 No dia de Natal, Ernest resolveu descer para se reunir com sua família. Antes, resolveu se trocar para uma roupa mais apropriada: um sobretudo marrom, para se livrar do frio, e um par de botas pretas. 

 Preparando-se para abandonar o quarto, o rapaz ouviu alguma coisa tocar na sua janela. Pareciam batidas. Batidas de bico de uma ave. Ernest correu em direção a sua janela e a abriu, deixando seu corvo de estimação, que havia fugido desde o dia mais triste de sua vida, retornar para casa. Apesar de todos os pesares, o rapaz esteva realmente emocionado com a volta do seu pássaro que logo se acomodou no seu pequeno santuário, que ainda estava armado.


 Feliz por ter sua ave de volta, Ernest baixou a cabeça por um instante e pensou em Diana. O rapaz imaginou o quanto ela estava bem e que a vida da garota seria imensamente melhor sem ele por perto. Enfim, aceitou. Mas ainda esperava revê-la, um dia. Quando finalmente saiu do quarto e bateu a porta para rumar às escadas que dariam acesso à festa de Natal, escutou o telefone de seu quarto tocar. 


terça-feira, 8 de dezembro de 2015

35 anos sem Lennon



 “Vida é aquilo que lhe acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos.”  São essas sábias e emocionantes palavras ditas por John Lennon na música “Beatiful Boy (Darling Boy), um de seus últimos trabalhos, presente no seu último álbum lançado quando ainda estava vivo, Double Fantasy. A música foi escrita para o seu filhinho de 5 anos, Sean, e, mesmo sendo considerada hipócrita por alguns – devido ao fato de John nunca ter dedicado uma canção tão forte ao seu primeiro filho, Julian (quem fez o serviço foi Paul, em “Hey Jude”) -, esta marca uma emocionante prova de amor que John sentia pela sua família.

 Infelizmente, o álbum Double Fantasy, lançado após um longo recluso artístico de 5 anos do músico, marca uma notável despedida de Lennon à vida mortal, que lhe era tão preciosa quando estava junto de Yoko Ono e Sean. John sonhava em ter uma chance e voar para algum lugar distante com sua família, porém, acabou indo ele para um mundo onde não há paraíso, sem inferno abaixo e acima apenas o céu. Quem diria que, após aquela trágica noite de 8 de dezembro de 1980, a música (Just Like) Starting Over, de Double Fantasy, ficaria lembrada como a principal marca da tal despedida de Lennon.

 Três músicas, na verdade, do álbum Double Fantasy, marcam características que foram fundamentais para a vida John Lennon: “Beautiful Boy” é marcado pelo amor que sentia pelo seu filho pequeno; “Woman” é marcada pelo carinho e gratidão que John tinha por Yoko (coisa que o músico aprendeu bastante ao longo do tempo) e “(Just Like) Starting Over” marca a despedida e o recomeço de uma nova vida tanto para o músico (uma vida espiritual) quanto para a sua família.

 Questionado uma vez por jornalistas o porquê de residir em Nova York, John respondeu: “Aqui, me deixam viver.”. Apesar do grande pesar que ocorreu em dezembro de 1980, Lennon realmente viveu a vida que sempre sonhou na Grande Maçã. Passeava tranquilamente pelo Central Park, participava de campanha contra a violência e à favor da paz, dava entrevistas e autógrafos quando um fã o reconhecia, sempre espontâneo e atencioso, muito diferente do John Lennon jovem e rebelde do início da carreira.

 Nascido em 9 de outubro de 1940, em Liverpool, John Lennon teve uma infância traumática. Seu pai havia o abandonado e sua mãe sofria de problemas psicológicos. Foi criado pela tia, Mimi Smith, que era bastante conservadora e não acreditava que a música traria ao sobrinho uma vida de sucesso. 

Quando John começou a se aproximar da mãe, no final dos anos 50, esta é morta atropelada por um policial bêbado. Foi Julia Lennon que incentivou o filho a ingressar na carreira musical, fazendo liderar a banda The Quarrymen. Porém, o acontecimento mais importante em sua vida, que mudaria para sempre sua carreira, foi conhecer Paul McCartney, em 6 de julho de 1957. Assim, Lennon-McCartney lideraram juntos a banda que, pouco depois, se tornaria The Beatles. De 1962 a 1970, John Lennon viveu o sucesso da Beatlemania pelo mundo inteiro e compôs obras de extrema importância para o mundo da música, como: Strawberry Fields Forever, Penny Lane, In My Life, Nowhere Man, Across The Universe, A Day In The Life, entre outras.

 Outro acontecimento importante em sua vida foi no ano de 1966, quando conheceu a artística plástica contemporânea Yoko Ono. Os dois se casaram em 1969 e promoveram uma campanha a favor da paz, ficando um mês na cama. O protesto, considerado por muitos uma grande pancada de marketing pessoal, se chamou “Bed-in”.

 Na Plastic Ono Band, banda formada logo após o fim dos Beatles, e na carreira solo, Lennon desenvolveu famosas músicas como “Give Peace A Chance”, “How Do You Sleep”, “Imagine – um dos maiores hinos da paz mundial e, consequentemente, uma das músicas mais importantes de todos os tempos -, “Happy Xmas (War Is Over)”, “Instant Karma”, “Mind Games”, entre outras.
 John estava desde 1975 sem lançar algum material novo. Seu último álbum de estúdio havia sido um conjunto de regravações de Rock dos anos 50 e 60, “Rock N’ Roll”. Entre as canções, está a clássica regravação de “Stand By Me”, de Bem E. King. Em 1980, Lennon retorna com Double Fantasy. No final daquele ano, ainda dando entrevistas por causa do novo projeto, o músico e a esposa, Yoko Ono, saíram à tarde para um estúdio de gravação, onde aconteceria uma entrevista de rádio. Quando Ono e Lennon saíram do Edifício Dakota, na frente do Central Park, se depararam com uma multidão na calçada aguardando-os. Lennon atendeu à quase todos, inclusive um estranho rapaz que pediu pra que John autografasse seu disco de Double Fantasy – uma foto do momento foi capturada, porém, me recuso a postá-la no site, uma vez que o sujeito estranho seria o assassino de John Lennon.

 Quando voltou ao Dakota, por volta das 22:50, John e Yoko estavam a caminho do portão principal do Edifício quando uma voz chama o músico: “Mr. Lennon!”. Era o tal rapaz estranho, chamado Mark Chapman, que disparou 5 tiros contra John; 4 acertaram em cheio o músico, um deles rompendo sua artéria, o que o fez perder 80% do volume sanguíneo. Chapman foi abordado no local pelo segurança do Dakota e cumpre a pena de prisão perpétua. Segundo o assassino, ele teria feito o que fez devido às declarações de Lennon sobre Deus, considerado por ele uma blasfêmia, e pela afirmação de que “os Beatles eram mais populares que Jesus”, em 1966. Chapman afirmou que vozes do além o atormentavam, dizendo para ele matar o músico. Há, obviamente, várias teorias conspiratórias a respeito do caso, como uma que envolve questões políticas e até mesmo a CIA no assassinato de John Lennon.

 Há 35 anos, o mundo perdia não só um grande músico, compositor e idealista, mas também o Herói da Classe Trabalhadora, a Morsa, o "Homem Ovo", o Homem/Garoto de Lugar Nenhum, o Culpado que nunca poderia ler sua mente, o Cara Ciumento que lamenta muito por ter feito você chorar e, principalmente, o Sonhador que Imaginava e que até hoje nos faz Imaginar que, um dia, o mundo viverá como um só.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Conserva Parte II

 CONSERVA 

Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição.


                             PARTE II

  As pilhas do relógio da parede precisavam ser trocadas. Desde a meia-noite em ponto daquela terça-feira, o objeto estivera parado. Não se preocupando muito com tal fato, Ernesto aprontava o estabelecimento para a chegada dos clientes. Esperava ver alguns amigos naquela noite fria, para servir altas rodadas de cervejas quentes.

 Mais tarde, um de seus velhos conhecidos chegou à taberna. Um homem de cabelo cacheado, olhos escondidos por um óculos “fundo de garrafa”, que trajava um enorme sobretudo cinzento de frio e um chapéu, deixando os itens no cabide próximo a porta de entrada.

- Timothy, meu velho! – Cumprimentou Ernesto, ao ver seu bom freguês na perto a porta. – O que o traz aqui? 

- Em primeiro lugar, Ernie, minhas pernas. – Brincou o homem. - Em segundo, uma caneca da sua melhor cerveja. Em terceiro, mas não menos importante, um pouco de companheirismo. Onde estão os outros? Peter, Brendan, Iago...?

 Sentindo um leve ódio ao escutar o nome do homem que matara na noite anterior, Ernesto forçou um sorriso e respondeu:

- Peter já deve está chegando, talvez. Iago... eu não o vejo há um bom tempo?

- Nem tanto tempo assim, eu acho. Não lembra do caos que estava aqui no último sábado? Tudo obra do...

 O diálogo de Timothy foi interrompido quando a porta da taberna abriu, revelando outro antigo freguês.

- Adrian! Venha se juntar a nós! – Disse imediatamente Ernesto.

 Adrian, homem baixinho e franzino, decidiu não tirar a cartola que sempre usava. Sentou-se junto a Timothy em frente ao bar e começou a beber e papear com os amigos.

 Após um tempo, Timothy consultara seu relógio de pulso que marcava nove horas da noite. Vendo que estava tarde, decidiu voltar para casa, arrastando Adrian consigo.

- Amanhã é dia de trabalho, companheiro. Temos que estar sóbrios. – Repetia Timothy enquanto arrastava o amigo baixinho para fora da taberna.

 Após se despedir dos fregueses amigos, Ernesto sentiu-se um pouco isolado. Gostava quando a freguesia no seu bar era amigável e, principalmente, de conversar as bobagens da vida com os verdadeiros amigos. Antes de adormecer naquela noite, o barman releu a carta de sua amada prima, criando grandes expectativas para a sua chegada ao vilarejo. Sua última leitura da noite foi mais um conto do seu escritor favorito, Edgar Allan Poe. Após ler “Os Dentes de Berenice”, pegou no sono.

 Na manhã de quarta-feira, Ernesto foi despertado com o toque do telefone que ficava acima da sua mesa de cabeceira. Ainda sonolento e sem saber a hora, o barman atendeu, emitindo uma voz forçada de quem estaria morrendo de sono:

- Alô? – Perguntou ao outro lado da linha, dando um enorme bocejo, em seguida.

- E-Ernesto? – A voz gaguejava.

Preocupado, o barman logo perguntou:

- Quem está falando?

- Ernesto... sou eu... Glória.

Glória era esposa de Timothy, que aceitava perfeitamente as idas do marido à taberna. Até pelo fato dela, professora da escola primária, também visitar o estabelecimento nos finais de semana, para esquecer as crianças chatas da escolinha por um ou dois dias.

- Aconteceu alguma coisa, Glória? Sua voz...

- Timothy morreu! – Disse diretamente a mulher, seguido de soluços e prantos.

 Ernesto ficou sem saber o que dizer. Seu amigo estava com ele há menos de 8 horas. Como Timothy, cheio de vida e saúde, teria morrido?

- O que você está dizendo? – Perguntou o barman, controlando-se para não entrar em desespero.

Glória deu uma pausa nos soluços e tornou a falar.

- Ele... ele simplesmente... começou a vomitar. Vomitar sangue. No vômito dele... Meu Deus... havia algo apodrecido.

- O quê? Apodrecido?

- Aquele cheiro... aquela consistência de sangue prestes a coagular... talvez isso não seja o pior.

 Mais um baque atingira o coração do barman. Como poderia haver outra coisa pior que a morte de um dos melhores amigos? Além de ter sido uma morte deveras tão estranha?

- O que pode ser pior que isso? – Perguntou Ernesto, receoso.

- Adrian também morreu de madrugada. – Respondeu Glória, com a voz ainda trêmula e chorosa.

 Ernesto deixara cair o telefone na mesa de cabeceira. O barman afundou-se na cama, esperando acordar de um terrível pesadelo da qual jamais despertaria.

- Ernesto? Ernesto? Ainda está aí? – Gritava Glória, do outro lado da linha.

 Ao recuperar um pouco os sentidos, o barman voltou ao telefone e perguntou:

- Não me diga que ele também morreu do mesmo jeito que Timothy?
Glória se calou por um momento. Não sabia o que responder, para não parecer algo tolo ou incompreensível.

- De acordo com Elisabeth (esposa de Adrian), sim. E para piorar, exatamente à meia-noite.

- Timothy também? Meia-noite?

- Sim.

- Os corpos já estão com Dicker?

- Ele já examinou os dois, a madrugada inteira. Disse que precisa manda-los para a cidade mais próxima, onde necrotérios mais estruturados farão seus exames para constatar a causa da morte.

- Estou indo para Dicker. 

David Dicker era o dentista, enfermeiro, doutor, cardiologista, parteiro e médico legista do vilarejo. Frequentava também o bar de Ernesto, porém costumava passar mais tempo lá na época em que pertencia ao pai do barman. Era um senhor de idade, talvez o único idoso que frequentava a espelunca, culto e inteligente, que sempre estava disposto a ajudar.

 Chegando ao pequeno necrotério do vilarejo, Ernesto, preocupado, foi logo perguntar a Dicker se havia sido detectado veneno nos corpos dos amigos.

- Não sei dizer exatamente, Ernesto. – Respondeu o doutor. – Não consegui identificar um tipo de substância química, além do álcool ingerido, que não foi uma quantidade capaz de causar morte, até pelo fato de já ter visto situações piores graças à bebida, nem veneno. 
Por isso também que decidir encaminhar os corpos para a cidade.

- Alguma previsão de quando sairá um laudo com a causa das mortes? – Perguntou Ernesto, apreensivo. O barman tinha medo de ser o culpado pelas mortes dos amigos. E se uma gota daquele mortal veneno que tivera dado para Iago tivesse caído acidentalmente nos copos do bar?

- Olha, Ernie... eu não sei dizer. Mas, fique calmo. Sei que sua taberna jamais possuiu alguma bactéria ou coisa do tipo.

 Se o legista soubesse o que o barman mantinha escondido no porão do seu estabelecimento... Ernesto até perguntou se seria necessário alguém fazer uma vistoria na taberna para detectar alguma substância estranha ou bactéria, pois sua preocupação era maior que sua língua. Mas Dicker respondeu que não seria necessário por enquanto.

 Quando estava saindo do necrotério, Ernesto se deparou com Brendan, outro velho amigo, que entraria no local pequeno e gelado para reconhecer os corpos dos companheiros (não acreditara quando Glória lhe dera a notícia). Ao ver Ernesto, o homem, magro e de semblante doente, que trajava um cachecol que parecia lhe apertar o pescoço, com os olhos cheios d’água e o rosto inchado de tanto chorar, abraçou amigavelmente o barman. Ernesto retribuiu o abraço cheio de sentimento e em seguida falou o que os dois precisavam realmente ouvir:

- Precisamos de um trago.

- Aos nossos companheiros – completou Brendan – Rapaz... o que foi que aconteceu? Por que eles fizeram isso com a gente?

- Eu não sei, meu velho... somos só eu, você e Peter, agora. Por falar nisso, onde ele está? Já o avisaram da tragédia?

 Brendan deu um longo suspiro e tornou a falar:

- Sim. Ele está em casa. Não quer falar com ninguém. Você sabe que ele e o Timothy cresceram juntos, foram praticamente criados pela mesma mãe, então... E é verdade... somos só nós 3, agora. Ah, e o Iago também. Não sei se ele já sabe o que aconteceu. Pra falar a verdade, não o vejo há um bom tempo.

 Ao escutar o nome daquele ser humano repugnante da qual havia se livrado para sempre, Ernesto sentiu uma forte energia negativa dentro de si. Como se alguma coisa pior do que a morte de dois dos seus melhores amigos estava prestes a acontecer. O barman, simplesmente, preferiu ignorar o fato de o cigano ainda estar “enterrado” no porão de sua taberna e deu continuidade a conversa:

- Pois é... eu também não sei onde ele está. Deve ter sido convocado para outra feira de ocultismo sem nos avisar, como sempre. – Mentiu.

 Enquanto caminhavam até a casa de Brendan, onde iriam almoçar, os dois homens relembravam as situações engraçadas em que o grupo de amigos haviam se metido ao longo dos anos, como uma vez em que, todos eles bêbados, inventaram de sair na floresta para procurar um Yeti e acabaram se esbarrando em um enorme urso pardo que atualmente enfeitava o chão da biblioteca da casa de Peter. Terminado o almoço, Ernesto e Brendan combinaram uma hora para começar a bebedeira, a fim de amenizar a dor e o sentimento de vazio.

 Às 6 horas em ponto da noite, Brendan chega ao bar. Ernesto, como sabia que Peter não iria comparecer naquela noite, fechou as portas da taberna e a manteve aberta apenas para si e o velho amigo, que já estava se servindo de uma grande dose de conhaque envelhecido.

 Menos de duas horas depois, os homens se encontravam em estado altamente deplorável. Não conseguindo controlar a língua, tampouco as emoções, Ernesto começou a contar coisas que não devia para Brendan, que bem atento escutava passo a passo das confissões do barman.

- Sim! Eu acabei com a raça daquele maldito e imprestável cigano com um veneno do próprio povo dele! – Repetia Ernesto, gargalhando até ficar rouco.

 Brendan não tinha noção da barbárie que estava ouvindo, mas, mesmo assim, decidiu atiçar Ernesto a lhe mostrar o corpo de Iago.
- Eu vou mostrar! – Exclamou Ernesto, ao ser perguntado sobre o corpo. – Vamos lá!

 Levantando-se de uma das mesas e cambaleando para tentar se manter de pé, o barman tirou de um dos bolsos a chave que abria o acesso ao porão e seguiu com o amigo, também sem forças nas pernas, para baixo. Estava escuro e húmido, situações incomuns no lugar mais bem cuidado do estabelecimento. Quando o barman retirou a tampa de pedra que tapava o pequeno poço de cerâmica, Brendan pôde ver o corpo de Iago, totalmente pálido e encharcado, boiando junto às cebolas. Ao se deparar com aquilo, seus sentidos de repente retomaram e um choque tomou conta de sua razão.

- Como... Como você pôde fazer isso?? – Gritou para Ernesto, jogando o barman contra uma parede e levantando-o pela gola do casaco. – Você perdeu o juízo? Tem ideia do que fez?

- Eu estraguei o sabor das cebolas? – Perguntou Ernesto em tom de brincadeira, apesar de estar completamente embriagado e tonto.

A resposta para a sua pergunta foi um belo golpe dos punhos magros de Brendan na cabeça, o que fez o barman apagar. Quando recuperou os sentidos, estava sentado em uma das poltronas que dava para a lareira da taberna.

- Você está bem? – Perguntou Brendan, ao ver que Ernesto recuperara a razão.

 O homem levou a mão à cabeça e percebeu um galo na altura da testa.

- Eu acho que sim. Já estive pior.

- Então? O que você vai fazer?

Ernesto sabia que havia falado o que não devia, mas, mesmo assim, tentou disfarçar:

- Do que está falando?

- Não banque o espertinho comigo, Ernie. Eu sei o que você fez. O corpo de Iago ainda está no poço. Nós precisamos arranjar um meio de nos livrar dele quanto antes.

 Os dois homens estavam preocupados. Não sabiam o que fazer a respeito daquele corpo. Ernesto contara sua ideia a Brendan, de enterrar Iago no domingo, enquanto não haveria ninguém nas ruas. O amigo questionou:

- E qual é o problema de fazer isso de madrugada?

- E se alguém me vir? – Perguntou o barman, extremamente preocupado.

- Você tem mais chances fazendo isso agora, comigo, do que sozinho. Eu sei que não devia, mas vou ajudá-lo.

 Ernesto sentiu, nesse momento, um grande afeto por Brendan. Não se fazia mais amizades como a dele.

 Após elaborar um meticuloso plano para dar fim ao corpo de Iago, os dois amigos esperaram o relógio da catedral do vilarejo dar a primeira badalada do novo dia para botar o plano em ação.

- Preciso concertar meus relógios. – Disse Ernesto. – Desde a meia-noite de hoje, todos estão parados.

- Todos eles pararam ao mesmo tempo?

- Sim, a meia-noite. Por que essa cara?

 A expressão de Brendan mais revelava um homem doente apavorada com determinada situação do que um adulto pronto para exercer um trabalho de extrema responsabilidade.

 Assim que o relógio do vilarejo avisou a todos que a meia-noite chegara, os homens se levantaram da mesa e andaram em direção a escada que levava ao porão.

 Brendan, porém, parou ainda no primeiro degrau, começou a sentir fortes dores dentro do corpo, mas não sabia dizer exatamente de onde vinham. De repente, o homem, que não mais aguentava da dor que se assemelhava a mais de 100 espadas japonesas perfurando seu corpo, caiu escada a baixo. Assustado, Ernesto correu em direção ao seu amigo. Ao tentar levantar o companheiro, este simplesmente começou a gritar e se debater no chão. Ernesto não sabia o que fazer. A pele de Brendan estava começando a ficar pálida, fria e, inexplicavelmente, húmida; por fim, antes do último suspiro agonizante que ainda lhe restava, o homem vomitou litros de sangue que já estavam em estado de coagulação por todos os lados. O cheiro de putrefação exalou pela taberna.

 Ernesto, sem saber o que fazer, ficou sem reação. Estava ainda ajoelhado, ao lado do corpo sem vida de Brendan. Suas roupas sujas do vômito de sangue, suas mãos trêmulas e a expressão de horror estampada em seu rosto, porém, não era nada comparado ao que estaria por vir. 



(Continua...)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Conserva - Parte I

CONSERVA
Um conto, dividido em 3 partes, de suspense (bom... deveria ser), vilarejo, bebida, assassinato e maldição


PARTE I

 Ernesto não mais aguentava os abusos de Iago. O velho cigano, bastante conhecido entre a vizinhança do vilarejo, que era um dos principais fregueses da oculta e mal frequentada taberna da família de Ernesto – o estabelecimento pertencera ao seu bisavô, avô e pai - , estava abusando de seus calotes com o pobre barman, além causar inúmeros prejuízos durante suas bebedeiras e ameaças de revelar acontecimentos futuros para o dono do estabelecimento, que era bastante supersticioso.

 O barman, cujos nervos estavam ultimamente por um fio, temia perder a paciência com aquele inconveniente “cigano” que tanto lhe tirava do sério. Quando o ódio infelizmente toma conta da cabeça de um homem, este deve preservar ao máximo o mínimo de razão que ainda lhe resta. Infelizmente, esse não foi o caso de Ernesto.

 Recentemente viúva, uma prima de qual o pobre barman sempre fora perdidamente apaixonado faria uma visita a sua casa, que ficava acima do seu estabelecimento comercial, na próxima semana; e Ernesto não gostaria que Vivian o visse sendo debochado por um cigano bêbado e velho que se achava superior que os demais. Por isso, veio-lhe em mente uma ideia maligna, da qual ele se arrependeria profundamente mais tarde, mas não naquele momento: Teria de se livrar de Iago.

 Naquela noite de segunda-feira, apenas dois dias depois de planejar, tudo estava pronto. Sentado do lado de trás do balcão de madeira envelhecida, pregado ao chão, também de madeira, do bar, Ernesto esperava ansiosamente seu único cliente das segundas-feiras. No extenso armário das bebidas atrás do barman, da qual havia várias garrafas de longa data de whiskey e rum, da época em que a taberna de Ernesto vivia seus dias de ouro, o homem teria guardado uma camuflada garrafinha inusitada que, na verdade, era um poderoso veneno que o barman comprara para alguma eventualidade em uma das feiras ciganas que aconteciam no vilarejo anualmente. Apesar de estar com a cabeça absurdamente quente, Ernesto não poupou frieza em sua perturbada mente para eliminar o homem que tanto lhe causava ódio com um elemento fabricado pelo seu próprio povo. Quando o cigano se sufocar com a substância mortal e esta começar a fazer o efeito que causaria sua morte, Ernesto esconderia o corpo dentro de um alçapão que dava para um poço, revestido de cerâmica, cheio de cebolas em conserva (da qual o barman as servia no bar como aperitivo irresponsavelmente há mais de 10 anos). A água que deixava o alimento conservado faria o mesmo com o corpo de Iago até o domingo, quando todos os habitantes do vilarejo iam para a Igreja, exceto Ernesto e os poucos ciganos que lá viviam (que costumavam ficar em casa nas manhãs de domingo e sair apenas durante a noite); dia perfeito o domingo para o barman levar o corpo discretamente para a floresta e enterrá-lo.

 De acordo com o que a prima Vivian dissera, ela chegaria à cidade na próxima segunda-feira. “Imagina se minha prima se deparasse com aquele indivíduo bêbado e mau caráter assim que chegasse a minha taberna?”, pensava Ernesto. “Aquilo deve ser feito, e deve ser hoje!”.

 Às 10 horas da noite em ponto, seu tão “adorado” freguês chega ao bar, já embriagado devido às “abrideiras” que tomara durante a tarde. Iago, esbanjando folga e descontração, cambaleia, chacoalhando as diversas pulseiras que haviam em seu pulso, para o balcão.

- Meu amigo! – Cumprimentou o cigano, avançando perante o balcão para me dar um abraço desajeitado. - Ué? Mas não tem mais ninguém aqui?

Ernesto respirou fundo e respondeu, enquanto preparava um copo de cerveja quente:

- Você é meu único cliente das segundas, não lembra? A maioria do vilarejo trabalha durante a semana...

- E você também! Por isso está aqui, me oferecendo essa maravilha de bebida! – Interrompeu o cigano, virando o copo de cerveja em menos de 5 segundo goela abaixo. – Aliás, sobre a minha conta, acho que a partir do próximo mês vou começar a pagá-la.

- Você está prestes a pagar sua conta, meu caro. – Disse Ernesto para si próprio, como se estivesse pensando alto.

 Iago estava tão bêbado que não havia prestado atenção na possível ameaça da qual eu murmurara. Ernesto resolveu, então, botar meu plano para funcionar. Após servir o velho cigano com outro copo gigante de cerveja amarga quente, o barman virou-se para o armário de bebidas para pegar uma garrafa de um pouco valioso, porém de sabor magnífico, vinho italiano chamado La Gôndola, datado do início da década passada, para servir ao seu “convidado”, juntamente com o veneno dissolvido.

 Percebendo que seria bastante prudente manter a porta da taberna fechada, para que ninguém aparecesse de surpresa e se deparasse com Iago se contorcendo no chão, Ernesto improvisou:

- Está um pouco frio. – Disse a Iago, fingindo estar massageando o peito com as mãos. – Vou acender a lareira.

Iago, quase mergulhando a cabeça por cima dos braços no balcão, concordou com a cabeça. Assim, Ernesto se deslocou para a bela lareira de mármore preto, cujo corpo da chaminé que ficava logo acima da peça rochosa escura, possuía diversas fotos e placas dos velhos tempos em que sua espelunca era um bar de renome, para acender o fogo. Após manter o ambiente aquecido, discretamente, o barman andou em direção à porta e às janelas da taberna, trancando todas.

 Ao finalmente retornar ao seu posto. Ernesto começou a encenação:

- Gosta de ler, cigano?

 Iago, que mal conseguia falar de tão embriagado, respondeu soluçando:

- Bom... depende... hic! Gosto de ler fantasias, ou histórias de suspense... hic!..., mas não costumo ler muito essas coisas. Leio mai... hic!... meus livros de esoterismo e misticismo. 

- Já ouviu falar em Edgar Allan Poe? – Sempre havia um brilho nos olhos de Ernesto quando mencionava seu autor favorito, seja qual fosse a ocasião.

- Ouvir, eu já ouvi. Ler, nunca li! – Respondeu Iago, seguido de uma típica risada forçada de bêbado.

- Uma pena, eu diria. Mas, tudo bem. Há um conto dele que sempre me deixou impressionado, “O Barril de Amontillado”. Conta a história de um homem, cansado dos abusos e implicâncias de um amigo, Fortunato, que decide se vingar, levando o tal provocador para o subsolo de uma adega, para procurar uma valiosa garrafa de vinho, e o emparedando nos tijolos do local escuro e esquecido por Deus e o mundo.

 Iago, que, como era de se esperar, não estava prestando atenção e jamais desconfiaria que Ernesto faria dele um Fortunato em poucos minutos, respondeu à aula de literatura do amigo:

- Então... tens uma garrafa dessa de amontinãoseioquê aí contigo? Hic!

 Ernesto se virou para pegar a pouco valiosa garrafa de La Gondola, servir duas taças e jogar uma mísera gota do poderoso veneno em uma delas. Enquanto isso, Iago continuava:

- Ou um barril inteiro, se não se importar? – Dando suas típicas gargalhadas que exalavam um fedor de hálito podre misturado com álcool.

Ernesto respondeu, ao se virar:

- Amontillado eu não tenho, meu caro. Mas, tenho uma coisa melhor. – Ernesto pôs a garrafa de vinho e as duas taças por cima do balcão da taberna. – Imagino que você não irá recusar esse néctar dos deuses.

 Iago, cujos olhos estavam enfim totalmente abertos, respondeu, bastante entusiasmado:

- Não precisei consultar as cartas, nem mesmo as estrelas, para saber que hoje eu seria presenteado!

- Nada como uma boa surpresa para o meu único cliente das segundas. Então, saúde! – Disse eu, erguendo minha taça.

- Eu juro que vou repensar nas minhas contas atrasadas. Minha dívida será paga. – Respondeu Iago, erguendo a taça e virando-a goela abaixo, em seguida.

- De fato. – Assentiu Ernesto entre dentes, esperando a mágica acontecer.

 Assim que terminara de engolir a bebida, o cigano caíra para trás com um forte baque no chão, batendo violentamente a cabeça no piso de madeira. Após se contorcer de forma bastante medonha, aos olhos de Ernesto, no chão, Iago finalmente havia perdido todas as sensações humanas que possuía, inclusive a de ter prazer em beber, e capacidades, como respirar. Estava pálido, imóvel, com os olhos bastante esbulhados e espumando pela boca. O barman jamais tinha visto um veneno tão eficiente como aquele, desde a invenção dos refrigerantes.

 Com um discreto sorriso de satisfação no rosto, Ernesto pulou o balcão e foi de encontro ao corpo do velho cigano que no chão de madeira jazia. Olhando claramente para aqueles olhos extremamente abertos, com as pupilas dilatadas, que não mais enxergavam, o barman sentiu um breve remorso, que logo foi aliviando quando este sentiu uma medonha vontade de pisar no rosto do falecido, o que foi feito logo em seguida. Com o impacto do pé de Ernesto, o nariz de Iago quebrou e uma poça de sangue formou-se ao lado de sua cabeça.

 Sabendo que estava na hora de esconder o corpo naquele lugar secreto, onde o cadáver não apodreceria até o domingo, Ernesto logo começou o procedimento. Pegou Iago pelas pernas e o arrastou até o subsolo de sua taberna – que era bem mais limpo e iluminado que o próprio estabelecimento, por ser o local favorito e mais bem cuidado do seu avô, que gostava de controlar a qualidade das bebidas e alimentos -, deixando, de maneira extremamente descuidada, um rastro de sangue pelo piso do estabelecimento. Quando finalmente chegou ao poço, que mais parecia uma fonte de uma praça qualquer, revestido com cerâmica e fechado com uma pesada tampa de pedra (a ideia do poço para guardar alimentos em conserva teria sido do avô de Ernesto, um velho maluco que adorava extravagâncias e fazia de tudo para manter a taberna em funcionamento), o barman despejou Iago água abaixo, não se esquecendo de antes amarrar uma barra metálica pesada em uma de suas pernas para que o corpo afundasse.

 Após fechar a fonte com a tampa de pedra, Ernesto foi limpar os rastros de sangue. As manchas que o barman não estava conseguindo remover no exato local em que Iago caíra foram ocultadas pelo resto do vinho, que Ernesto despejou no chão para disfarçar o cheiro. Quando terminou a “faxina”, o homem pôs a cadeira em que Iago estava sentado no devido lugar, deu um enorme suspiro e sentiu ter finalmente cumprido sua missão com o esperado sucesso.

 Quando percebeu que o relógio de uma das paredes da taberna marcava meia-noite em ponto, Ernesto decidiu apagar as luzes do estabelecimento para fechar de vez por aquela noite. Antes de o homem mover-se até o interruptor para apagar as luzes, uma repentina queda de energia escureceu o ambiente, deixando apenas a chama da lareira iluminando o local, que, em menos de 10 segundos, também desapareceu. Assustado com aquela infeliz coincidência, Ernesto pegou uma vela de uma das gavetas do armário de bebidas e a acendeu, caminhando em seguida às escadas que levariam até seus aposentos. Apesar da escuridão, o barman não mais se sentiu incomodado quando pôs os pés no quarto; sentindo-se cansado, resolveu dormir para em seguida vivenciar novos e ótimos dias sem o maldito e infame cigano caloteiro.


Continua...